São Paulo, quinta-feira, 18 de outubro de 2007

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Kirchner soube responder à indignação

HORACIO VERBITSKY
ESPECIAL PARA A FOLHA

A maior virtude da política de direitos humanos do presidente Néstor Kirchner consiste em ter se sintonizado com os desejos manifestos da sociedade argentina. Em 1976, a promessa dos militares golpistas de garantir a ordem com a repressão gozou do consenso da classe média urbana durante alguns meses. A hierarquia da Igreja Católica bendisse a intervenção. Tudo mudou quando veio a público o que acontecia nos campos de concentração clandestinos.
As denúncias dos organismos de defesa dos direitos humanos e sua comprovação isolaram a ditadura. Até os juízes designados pelos militares declararam nula a lei de auto-anistia, e a decisão foi confirmada em 1984 pelo Congresso restabelecido. Isso possibilitou as investigações da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas e o julgamento das três primeiras juntas militares, em 1984-85. Levantes militares entre 1987 e 1990 arrancaram leis de impunidade, mas não mudaram o sentimento de repúdio aos crimes da ditadura.
Os julgamentos a sério, iniciados em 1996 após a confissão de um capitão da Marinha, que admitiu ter atirado 30 pessoas no mar, reabriram o capítulo judicial enquanto uma nova geração se somava à mobilização em favor da justiça. Em 1998, juízes argentinos detiveram os ex-ditadores Videla e Massera e uma dúzia de altos mandatários pelo roubo de bebês, filhos de desaparecidos.
Esse crime não estava incluído nas leis de perdão. Em 2000, o Centro de Estudos Legais e Sociais considerou que não restavam razões para que as leis de impunidade fossem mantidas, solicitando à Justiça sua anulação. Foi o que fez o juiz federal Gabriel Cavallo em março de 2001, às vésperas do 25º aniversário do golpe.
Durante a crise de 2001/ 2002, foram exercidas pressões de toda espécie em favor do encerramento desses expedientes. O senador Eduardo Duhalde, que ocupou o Executivo interinamente, o Exército e o Bispado Castrense tentaram fazer com que a Suprema Corte validasse a impunidade. Mas o repúdio social foi tão forte que a decisão foi adiada.
Na primeira semana de seu governo, Kirchner decapitou a cúpula militar, que voltara a intervir na política interna. Na segunda semana, promoveu o julgamento político de vários juízes da Corte Suprema, na qual Menem instalara maioria automática. Juízes honestos confirmaram, em 2005, que as leis de impunidade eram nulas.
Isso deita bases para uma reconstrução ética e jurídica do Estado, enfraquecido pela impunidade, e satisfaz uma reivindicação social mantida nos momentos mais difíceis.
O fato de ter tornado sua essa reivindicação foi o fundamento sobre o qual Kirchner ergueu um vínculo com a sociedade distinto de qualquer coisa conhecida na Argentina pós-ditatorial.


O jornalista HORACIO VERBITSKY é colunista do jornal "Página 12" e autor de "O Vôo" (ed. Globo), sobre os desaparecidos políticos durante a ditadura, entre outros


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