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Kirchner soube responder à indignação
HORACIO VERBITSKY
ESPECIAL PARA A FOLHA
A maior virtude da política
de direitos humanos do presidente Néstor Kirchner
consiste em ter se sintonizado com os desejos manifestos da sociedade argentina.
Em 1976, a promessa dos
militares golpistas de garantir a ordem com a repressão
gozou do consenso da classe
média urbana durante alguns meses. A hierarquia da
Igreja Católica bendisse a intervenção. Tudo mudou
quando veio a público o que
acontecia nos campos de
concentração clandestinos.
As denúncias dos organismos de defesa dos direitos
humanos e sua comprovação
isolaram a ditadura. Até os
juízes designados pelos militares declararam nula a lei de
auto-anistia, e a decisão foi
confirmada em 1984 pelo
Congresso restabelecido. Isso possibilitou as investigações da Comissão Nacional
sobre o Desaparecimento de
Pessoas e o julgamento das
três primeiras juntas militares, em 1984-85. Levantes
militares entre 1987 e 1990
arrancaram leis de impunidade, mas não mudaram o
sentimento de repúdio aos
crimes da ditadura.
Os julgamentos a sério,
iniciados em 1996 após a
confissão de um capitão da
Marinha, que admitiu ter atirado 30 pessoas no mar, reabriram o capítulo judicial enquanto uma nova geração se
somava à mobilização em favor da justiça. Em 1998, juízes argentinos detiveram os
ex-ditadores Videla e Massera e uma dúzia de altos mandatários pelo roubo de bebês, filhos de desaparecidos.
Esse crime não estava incluído nas leis de perdão.
Em 2000, o Centro de Estudos Legais e Sociais considerou que não restavam razões para que as leis de impunidade fossem mantidas,
solicitando à Justiça sua
anulação. Foi o que fez o juiz
federal Gabriel Cavallo em
março de 2001, às vésperas
do 25º aniversário do golpe.
Durante a crise de 2001/
2002, foram exercidas pressões de toda espécie em favor do encerramento desses
expedientes. O senador
Eduardo Duhalde, que ocupou o Executivo interinamente, o Exército e o Bispado Castrense tentaram fazer
com que a Suprema Corte
validasse a impunidade. Mas
o repúdio social foi tão forte
que a decisão foi adiada.
Na primeira semana de
seu governo, Kirchner decapitou a cúpula militar, que
voltara a intervir na política
interna. Na segunda semana,
promoveu o julgamento político de vários juízes da Corte Suprema, na qual Menem
instalara maioria automática. Juízes honestos confirmaram, em 2005, que as leis
de impunidade eram nulas.
Isso deita bases para uma reconstrução ética e jurídica
do Estado, enfraquecido pela
impunidade, e satisfaz uma
reivindicação social mantida
nos momentos mais difíceis.
O fato de ter tornado sua
essa reivindicação foi o fundamento sobre o qual Kirchner ergueu um vínculo com a
sociedade distinto de qualquer coisa conhecida na Argentina pós-ditatorial.
O jornalista HORACIO VERBITSKY é colunista do jornal "Página 12" e autor de "O
Vôo" (ed. Globo), sobre os desaparecidos políticos durante a ditadura, entre outros
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