São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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DIREITOS HUMANOS

Circuncidada aos cinco anos, modelo somali Waris Dirie chega hoje a São Paulo para falar sobre a prática

"Mutilação genital feminina tem de acabar"

Associated Press
A modelo somali Waris Dirie, embaixadora da ONU para o combate à mutilação genital feminina


PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

A modelo somali Waris Dirie foi submetida à mutilação genital quando tinha cinco anos. Aos 13, fugiu da Somália, indo para Londres, a fim de evitar um casamento com um homem de 60 anos.
"Minha mãe pôs um pedaço de raiz de uma velha árvore na minha boca para eu morder. Segurou-me e murmurou: "Está quase acabando. Confie em mim". Mas a mulher me costurou com uma agulha", diz Dirie, que desmaiou de dor durante a mutilação.
Após a extirpação dos lábios vaginais, a ferida é costurada na Somália, o que dificulta a passagem da urina. Uma irmã e duas primas da modelo morreram por causa da mutilação genital feminina (MGF), também conhecida como circuncisão feminina.
A cada dia, cerca de 6.000 mulheres são circuncidadas em ao menos 28 países africanos. São mais de 2 milhões por ano.
O clitóris, órgão da sexualidade feminina, é extraído parcial ou inteiramente, causando problemas urinários, hemorragia, infecção, tétano e traumas psicológicos.
Os circuncidadores usam, sem anestesia, tesouras, cacos de vidro, lâminas e facas. Os instrumentos quase nunca são esterilizados. Cerca de 15% das mulheres submetidas à MGF -em geral à força- morrem durante o ato.
Em algumas regiões da África Ocidental, cinzas ou fezes de animais são colocadas no ferimento para acabar com o sangramento, o que aumenta a incidência de infecções graves e outras doenças.
Na Guiné, as meninas da tribo Cognagui são obrigadas a dançar após a mutilação genital, a fim de mostrar que não sentem dor.
Hospitais e médicos consultados pela Folha disseram que nunca atenderam brasileiras circuncidadas. Alguns desconheciam a existência da prática.
Atual embaixadora especial da ONU para o combate à MGF, Dirie, 30, chega hoje a São Paulo, com o patrocínio da American Airlines e do Golden Tower Hotel, para lançar o livro "Flor do Deserto" (significado de Waris, em somali), da editora Hedra.
Na terça, promove a palestra "Contra a Mutilação Genital Feminina, em Defesa dos Direitos da Mulher", às 19h30, no auditório da Folha (al. Barão de Limeira, 425, 9º andar). A entrada é franca. Os interessados devem fazer reservas pelo telefone 0/xx/11/3224-3473, amanhã (19/11) e na terça (20/11), das 14h às 17h.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Dirie concedeu, de Nova York, à Folha.

Folha - Você escreve em seu livro ("Flor do Deserto") que queria ser circuncidada porque achava que ia "tornar-se uma mulher" e deixar de ser "suja"...
Waris Dirie -
Eu realmente queria ser circuncidada, a princípio, por causa das várias razões absurdas que se contam a qualquer menina somali. Acho que as 2 milhões de meninas submetidas à mutilação genital por ano têm medo do verdadeiro poder de uma mulher.

Folha - Há alguma idade mais comum para a mutilação genital?
Dirie -
A idade varia desde meses após o nascimento até 18 anos. No meu caso, tinha cerca de cinco anos. Minha mãe pôs um pedaço de raiz de uma velha árvore na minha boca para eu morder. Segurou-me e murmurou: "Está quase acabando. Confie em mim". Mas a mulher me costurou com uma agulha. Essa prática varia nos 28 países africanos onde a MGF acontece.

Folha - Que tipos de instrumento são utilizados?
Dirie -
De lâminas de barbear a facas, passando por qualquer outro objeto cortante à disposição, incluindo até cacos de vidro.

Folha - Por que em alguns países as pessoas acreditam que a mulher possa vir a tornar-se prostituta caso não seja circuncidada?
Dirie -
Evidentemente, esse mito não faz sentido. Qualquer mulher pode ser prostituta, tenha ela sido cortada ou não. Além disso, ela não tomaria a decisão de virar prostituta aos cinco ou seis anos.

Folha - Há vários mitos envolvendo mulheres que não sofreram a mutilação genital...
Dirie -
Sim, são muitos, o fundamental é a idéia de que a vida não seria a mesma se uma menina não fosse mutilada. Ela seria enganada e isolada de todos os amigos até que fosse cortada.

Folha - Qual o papel da religião na adoção dessa prática?
Dirie -
A mutilação genital feminina não é uma prática religiosa, mas há quem se esconda atrás disso para evitar questionamentos. Não tem absolutamente nada a ver com nenhuma religião.

Folha - Muitas vezes, a MGF marca o ritual de passagem da infância para a adolescência. A ganense Mbugua Wariara, responsável por campanhas de conscientização das Nações Unidas, disse-me que a proposta é comemorar essa transição de outra forma. Como?
Dirie -
É possível celebrar a transição festivamente, com orações ou banquetes que dão as boas-vindas à nova fase da mulher. A mutilação genital tem de acabar.

Folha - Qual sua avaliação das campanhas da ONU? Há exemplos de mudanças?
Dirie -
Sem dúvida, as campanhas têm produzido bons resultados. Ao menos oito países da África já aprovaram uma declaração contra a MGF. Isso é um reflexo de que nossa mobilização vem obtendo avanços e gera conscientização. Todo o meu esforço humanitário diz respeito à minha atuação como embaixadora da ONU contra a MGF.

Folha - Existe alguma ação específica contra os circuncidadores?
Dirie -
Não, infelizmente não há nada particularmente voltado aos que promovem a mutilação, mas é lógico que precisaria haver. Desesperadamente, essas pessoas precisam ser educadas.

Folha - Alguns africanos que vivem nos EUA ou na Europa levam suas filhas para a África apenas para submetê-las à MGF. No resto do mundo, isso é proibido?
Dirie -
Há raros casos em países europeus e americanos, pois ali é ilegal praticar a MGF. Em outros locais, leis muito rígidas estão sendo aprovadas para evitar que as pessoas imponham essa tortura a seus filhos.


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