São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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ANÁLISE

Se ao menos Saddam fosse brasileiro

NICHOLAS D. KRISTOF
DO "THE NEW YORK TIMES", EM CARACAS

Dois grupo fizeram uma guerra de garrafas em Caracas numa noite dessas. Cacos de vidro ficaram espalhados pelo chão, alguns tiros foram disparados, e o Exército lançou bombas de gás lacrimogêneo para reprimir os choques.
O grupo de pessoas com o qual eu estava era composto por chavistas -denominação para os simpatizantes do presidente Hugo Chávez. Podíamos ver o que pareciam ser forças anti-Chávez a cerca de cem metros de distância. Eu me livrei do grupo chavista para observar a cena antes de as duas multidões se chocarem.
Esse tenso momento pareceu capturar o clima da América do Sul nestes dias: desespero, ira e, acima de tudo, instabilidade. O Banco Mundial anunciou na semana passada que a América Latina está sofrendo a sua pior recessão em duas décadas, encolhendo a sua economia em cerca de 1,1% neste ano, tendo a performance regional mais negativa em todo o mundo. Para piorar, neste momento-chave, nós, nos EUA, estamos perdendo a batalha ideológica na América Latina.
Nos anos 90, o Consenso de Washington -enfatizando o livre mercado- ganhou espaço. Com alguns ajustes, ainda oferece a melhor saída para o continente. Essa política tem histórias de sucesso no Chile e, em escala menor, no México.
Porém essa política agora é considerada por muitos como fracassada e desacreditada. Por esse motivo, uma pessoa pró-Fidel Castro, como Chávez, foi eleita na Venezuela, os defensores do livre mercado foram derrotados nas eleições presidenciais no Brasil e no Equador, e nas regionais do Peru. Pergunte aos comerciantes, e eles dirão que o Consenso de Washington apenas enriqueceu políticos corruptos.
Infelizmente, há alguma verdade nisso. O capitalismo não foi bem na América do Sul.
"A desigualdade na maior parte dos países da América Latina é maior do que há dez anos", afirma Julia Sweig, do Council on Foreign Relations. No Brasil, os 10% mais ricos da população possuem 48% da renda do país, enquanto os 10% mais pobres têm 0,7%. Na Argentina, que já foi país de Primeiro Mundo, visitei uma favela onde os médicos afirmaram que 90% das crianças tinham vermes.
Se ao menos Saddam governasse o Brasil! Se ao menos Chávez estivesse desenvolvendo armas nucleares! Então Washington prestaria atenção ao incêndio na porta do lado, que afetará os Estados Unidos tanto quanto as tramóias iraquianas nas próximas duas décadas.
O primeiro passo a ser dado é o de ter um compromisso com os latino-americanos. O governo Bush tem uma série de políticas para o Iraque, mas nenhuma para a América Latina.
Em segundo lugar, o comércio deve ser o instrumento-chave para a recuperação da América Latina. É justo dizer que essa é uma das áreas na qual o governo Bush tem se mantido ocupado na América Latina, apesar de proteger escandalosamente o aço e a agricultura americana.
Em terceiro lugar, os EUA precisam combater a corrupção mais agressivamente. A corrupção tem minado a eficiência do capitalismo na América do Sul e erodiu o apoio ao livre mercado. Essa é uma das razões para os investidores estrangeiros e os credores serem vistos como exploradores. Uma pichação em uma agência do Citibank em Buenos Aires resumiu bem esse sentimento: "Ladrões, devolvam nossos dólares".
Caso os EUA não ajudem no combate à corrupção, não ajudem a construir mercados, então tudo ficará como Caracas.


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