|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Na era da globalização, a paz global é impossível
UMBERTO ECO
Perto do final de dezembro, a
Academia Universal das Culturas
discutiu em Paris o tema de como
se pode imaginar a paz nos dias de
hoje. Não definir ou desejar, mas
imaginar. Logo, a paz parece ainda ser não apenas uma meta distante, mas um objeto desconhecido. Os teólogos a definiram como
a ""tranquillita ordinis".
A tranquilidade de que ordem?
Somos todos vítimas de um mito
original: no início havia uma condição edênica, depois essa tranquilidade foi violada pelo primeiro ato de violência. Mas Heráclito
nos preveniu de que "a luta é a regra do mundo, e a guerra é a geradora comum e senhora de todas
as coisas". No início houve a guerra, e a evolução implica uma luta
pela vida.
As grandes pazes que conhecemos na história, como a paz romana, ou, em nosso tempo, a paz
americana (mas também já houve
paz soviética, paz otomana, paz
chinesa), foram resultados de
uma conquista e uma pressão militar contínua através das quais se
mantinha uma certa ordem e se
reduzia o grau de conflitos no
centro, à custa de algumas tantas
pequenas, porém sangrentas,
guerras periféricas. A coisa pode
agradar a quem está no olho do
furacão, mas quem está na periferia sofre a violência que serve para
conservar o equilíbrio do sistema.
""Nossa" paz se obtém sempre ao
preço da guerra que sofrem os outros.
Isso deveria nos levar a uma
conclusão cínica, porém realista:
se queres a paz (para ti), prepara a
guerra (contra os outros). Entretanto, nas últimas décadas, a
guerra se transformou em algo
tão complexo que não costuma
mais chegar ao fim com uma situação de paz, nem que seja apenas provisória. Ao longo dos séculos, a finalidade da guerra tem
sido a de derrotar o inimigo em
seu próprio território, mantendo-o no desconhecimento quanto a
nossos movimentos para poder
pegá-lo de surpresa, conseguindo
forte solidariedade na frente interna. Hoje, depois das guerras do
Golfo e de Kosovo, temos visto
não apenas jornalistas ocidentais
falando das cidades inimigas
bombardeadas, como também os
representantes dos países adversários expressando-se livremente
em nossas telas de televisão. Os
meios de comunicação informavam ao inimigo sobre as posições
e os movimentos dos ""nossos",
como se Mata Hari tivesse se
transformado em diretora da televisão local. Os chamados do inimigo dentro de nossa própria casa e a prova visual insuportável da
destruição provocada pela guerra
levaram a que se dissesse que não
se deveriam assassinar os inimigos (ou mostrar que eram assassinados apenas por engano), e, por
outro lado, parecia insustentável a
idéia de que um dos nossos pudesse morrer. Dá para se fazer
uma guerra nessas condições?
As coisas ficaram ainda piores
depois de 11 de setembro. O inimigo está em nossa casa, mas
agora os meios de comunicação
não podem mais monitorá-lo,
porque ele está na clandestinidade. Cada ato terrorista vem ampliado pelos meios de comunicação, que, desse modo, fazem o jogo do adversário. Vão tirar de
Saddam as armas que o Ocidente
lhe forneceu e que, talvez, ainda
lhe esteja fornecendo, mas o verdadeiro inimigo nem sequer precisa mais de armas e tecnologias
próprias: usa as daquele que quer
destruir. Se, para bombardear
Londres, os alemães precisaram
fabricar suas V1 em casa, para
destruir duas torres americanas
foram usados aviões americanos.
Cai, finalmente, a divisão nítida
entre as frentes, e, se as guerras
são favoráveis aos fabricantes de
armas, são totalmente prejudiciais às companhias aéreas, ao turismo e a toda a rede comercial
globalizada.
Assim, a nova forma da guerra
é, de um lado, permanente devido
à imprevisibilidade do adversário
e, do outro, porque cada beligerante tem medo de levá-la até as
últimas consequências. Vários interesses multinacionais tendem a
transformá-la em endêmica, mas
não decisiva. Enfim, se, no passado, a guerra em outras partes garantia a paz no centro do império,
hoje é exatamente ali que o inimigo golpeia mais facilmente (e é
também ali que ele guarda seus
recursos financeiros próprios,
nos bancos do adversário). A
guerra em outra parte já deixou
de garantir a paz em nossa própria casa. Na era da globalização,
a paz global se mostra impossível.
Resta, então, a possibilidade única de trabalhar por uma paz como
manchas de leopardo, criando,
sempre que isso é possível, situações pacíficas na imensa periferia
das guerras que se desenrolam sucessivamente. Uma paz local se
estabelece quando, diante do cansaço daqueles que se batem, uma
agência negociadora se propõe
como mediadora numa zona precisa do mundo e produz uma
queda na beligerância. Uma série
contínua dessas ""pequenas pazes" pode, a longo prazo, ir diminuindo as condições de tensão geradas pela guerra permanente. É
como dizer que uma pequena paz
feita hoje em Jerusalém contribuiria para a redução das tensões em
todo o epicentro da guerra global.
A paz universal é como o desejo
da imortalidade, tão difícil de satisfazer que as religiões a prometem para depois da morte, não para antes. Uma paz pequena, pelo
contrário, é como um gesto do
médico que sara uma ferida. Não
é uma promessa de imortalidade,
mas, pelo menos, uma maneira de
retardar a morte.
Umberto Eco, escritor e ensaísta italiano, é autor de "O Nome da Rosa"
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Comentário: Saddam Hussein é a melhor razão para que se liberte o Iraque Próximo Texto: Pax americana Índice
|