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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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COMENTÁRIO

Saddam Hussein é a melhor razão para que se liberte o Iraque

JOHANN HARI
DO "THE INDEPENDENT"

Por que precisamos de provas da existência de uma reserva de antraz ou gás sarin para nos convencermos de que Saddam Hussein, o açougueiro de Bagdá, aquele que matou curdos com gases venenosos, merece ser tirado do poder? Hans Blix e sua equipe de inspetores da ONU divulgaram um relatório provisório no dia 9 em Nova York. Eles não encontraram armas de destruição em massa (ADM); logo, parece que a guerra não acontecerá agora. Por que esse fato leva tantos de nós, da esquerda, a relaxar? O que foi feito da esquerda que afirmava que tínhamos a responsabilidade moral de defender nossos irmãos humanos contra ditadores fascistas? Quando empreendemos a procura pelas ADM e aceitamos a derrubada de Saddam por essas razões, cometemos um engano crucial.
Você talvez esteja perguntando, incrédulo, quem é que pode querer ver seu país bombardeado? Eu também pensava assim, até que, em outubro, passei um mês vendo de perto a realidade sob a égide de Saddam. São os pequenos detalhes que permanecem na memória, após três meses. É a expressão pálida, apática, que recobria o rosto das pessoas quando eu mencionava Saddam. É o fato de os árabes dos pântanos -um povo orgulhoso e independente que viu os pântanos que sempre habitou serem drenados e que foi transferido para minúsculas barracas no deserto- serem forçados a pendurar um pequeno quadro de Saddam, ameaçador, em seus novos "lares". É a criança vestindo uma camiseta que diz "Sim, sim, sim ao papai Saddam".
Se o Reino Unido fosse governado por um homem assim, eu receberia bombas amigas (conceito que, no passado, eu achava absurdo) de braços abertos. Poderia arriscar a própria vida para acabar com a morte em vida imposta a meu país. A maioria dos iraquianos que conheci sentia isso.
O Grupo Internacional de Crise (GIC), centro de reflexão sediado em Bruxelas e que não é, de modo algum, favorável à guerra, fez entrevistas extensas com a população iraquiana no ano passado, e, como diz seu relatório, "um número significativo dos entrevistados expressou, com franqueza surpreendente, a opinião de que, se for preciso um ataque liderado pelos EUA para garantir uma mudança de regime, estarão a favor". "A idéia de deixar o destino do país nas mãos de uma parte estrangeira onipotente agrada a mais gente do que se poderia prever, e o desejo de um envolvimento de longo prazo dos EUA também é maior do que o previsto."
Mas o apoio à guerra se vincula a algumas condições importantes. Os iraquianos esperam que os EUA ajudem a reconstruir seu país após a guerra. É em favor dessa proposta que deveríamos estar promovendo passeatas nas ruas -não para nos opormos a uma guerra que vai tirar do poder um dos piores ditadores do mundo, mas para obter de Blair e Bush a garantia de que, após o conflito, vamos permanecer por lá e ajudar o povo iraquiano a erguer um Iraque pacífico, federal e democrático. Aqueles que desprezam essa possibilidade, ou devido à idéia racista de que os árabes são incapazes de criar uma democracia ou em razão de uma visão cínica, supostamente moderna, do progresso político, deveriam lembrar que seu desprezo poderia igualmente bem ter sido dirigido ao Japão ou à Alemanha do pós-Segunda Guerra Mundial.
Os japoneses não tinham nenhuma história anterior de democracia e liberdade, e os alemães tinham só memórias da desastrosa República de Weimar, mas a ocupação americana nos dois países supervisionou sua transformação em democracias bem-sucedidas. Justificam-se esperanças maiores para o Iraque porque sua população tem alto nível de instrução, o país possui uma infra-estrutura desenvolvida e porque será moralmente obsceno se os lucros das imensas reservas petrolíferas não forem investidos na reconstrução do país.
Como explica o relatório do GIC, "para a população iraquiana, que, desde 1980, já passou por um conflito devastador com o Irã, a operação Tempestade no Deserto, as sanções econômicas, o isolamento internacional e os periódicos ataques aéreos americanos e britânicos, um estado de guerra é algo que já existe há duas décadas". Que ninguém imagine que, se deixarmos de agir, a população iraquiana será deixada em paz -muito pelo contrário. Podemos agir para abreviar seu sofrimento.
Tampouco podemos criticar esta guerra dizendo que se trata de uma ""aventura imperial". A população iraquiana já está vivendo sob uma ocupação imperial. Os 80% da população formados por muçulmanos xiitas vivem sob a égide imperialista da minoria sunita, com quem não sentem nenhuma identidade comum.
Se seu ódio por Bush supera o que sente por Saddam, eu me solidarizo com você -é por isso que eu também, antes, enxergava a guerra com medo e desdém. Mas desconfio que, se você se visse frente a frente a realidade do Iraque de Saddam, mudaria de opinião. Claro que formar uma aliança com Bush é uma experiência desagradável, mas nos aliamos a Stálin para derrotar Hitler.
Não precisamos dos argumentos de Bush sobre "ação preventiva" nem das ADM para justificar a guerra. Precisamos apenas dos argumentos humanitários que usamos em Kosovo para tirar do poder o monstruoso Slobodan Milosevic -e, desta vez, poderemos agir com a certeza (em vez de apenas a suposição) de que a população que está sendo tiranizada vai aplaudir a ação.


Tradução de Clara Allain


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