São Paulo, terça-feira, 19 de janeiro de 2010

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HAITI EM RUÍNAS

Cidade mais destruída espera dias por ajuda

Leogane, a 50 km de Porto Príncipe, teve 90% das construções afetadas, segundo a ONU, mas só recebeu socorro externo anteontem

Médicos admitem que têm de escolher pacientes que atenderão; estimativa é de até 10 mil mortes entre os 50 mil habitantes do local

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A LEOGANE (HAITI)

Perto do epicentro, mas longe de Porto Príncipe, a pequena Leogane foi a cidade haitiana mais destruída pelo terremoto ocorrido há uma semana, com até 90% das suas edificações destruídas, segundo a ONU. Mas é também um dos lugares mais esquecidos: com as atenções voltadas à capital, a ajuda médica chegou apenas anteontem, e, segundo moradores, não há distribuição de alimentos.
"Você pode constatar, não tem polícia aqui", diz o engenheiro aposentado Rodrigue Lissade, 72, acampado fora da casa semidestruída, com um rifle ao lado. "Só pensam em Porto Príncipe, mas aqui tudo foi destruído e não vem ninguém."
A 50 km de Porto Príncipe, Leogane, de 50 mil habitantes, é uma das várias pequenas cidades a oeste da capital arrasadas, que incluem Petit-Goave e Jacmel -esta o principal destino turístico do Haiti, quando o país ainda recebia alguns visitantes em férias.
A estrada que sai de Porto Príncipe rumo ao oeste sofreu diversas rachaduras e desabamentos, fazendo com que haja meia pista em vários locais. Ao longo da viagem de uma hora e meia, havia vários caminhões e ônibus apinhados de pessoas deixando a capital haitiana.
O centro da cidade parece cenário de um bombardeio, com praticamente todas as construções destruídas, algumas tombadas sobre a rua, outras parcialmente em pé. Em algumas casas, o forte cheiro indicava a presença de mortos. Em nenhuma delas havia equipes de resgate trabalhando.
Por outro lado, já não há mais mortos pelas ruas, recolhidos pelos militares do Sri Lanka, responsáveis pela área. A ONU estima que de 5.000 a 10 mil pessoas morreram em Leogane, o equivalente a até 20% de sua população.
Apesar da destruição quase total, o cenário não é tão desolador como o de Porto Príncipe, devido à pouca presença de pessoas nas ruas. Os acampamentos na praça, em terrenos vazios e nas vias públicas reúnem menos gente, mas os relatos são igualmente dramáticos.
"Não há nada o que comer, não há água, não há medicamento, ninguém nos deu nada", diz Yvio Alexi, 30, acampado na praça com a mulher e o filho de quatro anos. "Comemos uma vez por dia, apenas arroz."
Ironicamente, um dos poucos prédios que sobreviveram é o hospital, mas o prédio está vazio: nunca chegou a receber médicos e equipamentos.

Ajuda tardia
Sem hospital, várias centenas de feridos e seus familiares formaram um acampamento diante da Escola de Enfermagem, também aparentemente intacta. Mas até anteontem, quando chegou uma missão de seis pessoas da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), o atendimento era feito por apenas um médico haitiano e as enfermeiras da escola.
Ontem, Leogane finalmente recebeu uma equipe médica com 25 japoneses, que montaram um moderno hospital de campanha, com grandes barracas brancas tubulares e equipamentos como gerador e mesas cirúrgicas.
Mas, para muitos pacientes, mesmo ainda vivos, a ajuda chegou tarde demais.
"Não podemos atender muito ao mesmo tempo. Se o tratamento não for bom, muitos irão morrer. Temos de atender bem os poucos para poder salvar as suas vidas", disse, visivelmente abalado, o médico tcheco da MSF Yan Trachta a um colega. Em volta dele, ao menos dez pacientes com profundas infecções e gangrenas em várias partes do corpo -uma mulher havia perdido metade da carne de um pé, os ossos à mostra.
Algumas crianças também traziam feridas graves. Uma delas, de quatro anos, tinha uma grande infecção na cabeça, o osso exposto.
Do lado de fora, uma mulher se desesperava ao ver o corpo da mãe ser carregado para fora do hospital, envolvido num lençol branco.
Num terreno ao lado, militares do Sri Lanka abriam um grande buraco, para ser usado de vala comum.
Minutos antes, Trachta havia tido uma discussão com um membro da equipe japonesa, que aparentemente defendia aceitar mais pessoas que esperavam fora. "Temos filosofias diferentes, é melhor trabalharmos separados."
Como o atendimento é recente, a MSF não terminou de levantar o número de feridos à espera de atendimento. Segundo o responsável pela admissão ao Colégio de Enfermeiras, onde estão ambas as equipes, cerca de 2.000 pessoas já estiveram no local em seis dias.
"Estamos tentando atender os que estão em pior estado, há infecções muito, muito avançadas", afirmou o canadense Gilles Bocage, 46, também do MSF. Com ampla experiência em países africanos como Congo, Sudão e Angola, disse que "é a pior situação em que já estive, pelo número de feridos".


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