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HAITI EM RUÍNAS
Cidade mais destruída espera dias por ajuda
Leogane, a 50 km de Porto Príncipe, teve 90% das construções afetadas, segundo a ONU, mas só recebeu socorro externo anteontem
Médicos admitem que têm de escolher pacientes que atenderão; estimativa é de até 10 mil mortes entre os 50 mil habitantes do local
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A LEOGANE (HAITI)
Perto do epicentro, mas longe de Porto Príncipe, a pequena
Leogane foi a cidade haitiana
mais destruída pelo terremoto
ocorrido há uma semana, com
até 90% das suas edificações
destruídas, segundo a ONU.
Mas é também um dos lugares
mais esquecidos: com as atenções voltadas à capital, a ajuda
médica chegou apenas anteontem, e, segundo moradores, não
há distribuição de alimentos.
"Você pode constatar, não
tem polícia aqui", diz o engenheiro aposentado Rodrigue
Lissade, 72, acampado fora da
casa semidestruída, com um rifle ao lado. "Só pensam em Porto Príncipe, mas aqui tudo foi
destruído e não vem ninguém."
A 50 km de Porto Príncipe,
Leogane, de 50 mil habitantes,
é uma das várias pequenas cidades a oeste da capital arrasadas, que incluem Petit-Goave e
Jacmel -esta o principal destino turístico do Haiti, quando o
país ainda recebia alguns visitantes em férias.
A estrada que sai de Porto
Príncipe rumo ao oeste sofreu
diversas rachaduras e desabamentos, fazendo com que haja
meia pista em vários locais. Ao
longo da viagem de uma hora e
meia, havia vários caminhões e
ônibus apinhados de pessoas
deixando a capital haitiana.
O centro da cidade parece cenário de um bombardeio, com
praticamente todas as construções destruídas, algumas tombadas sobre a rua, outras parcialmente em pé. Em algumas
casas, o forte cheiro indicava a
presença de mortos. Em nenhuma delas havia equipes de
resgate trabalhando.
Por outro lado, já não há mais
mortos pelas ruas, recolhidos
pelos militares do Sri Lanka,
responsáveis pela área. A ONU
estima que de 5.000 a 10 mil
pessoas morreram em Leogane, o equivalente a até 20% de
sua população.
Apesar da destruição quase
total, o cenário não é tão desolador como o de Porto Príncipe,
devido à pouca presença de
pessoas nas ruas. Os acampamentos na praça, em terrenos
vazios e nas vias públicas reúnem menos gente, mas os relatos são igualmente dramáticos.
"Não há nada o que comer,
não há água, não há medicamento, ninguém nos deu nada", diz Yvio Alexi, 30, acampado na praça com a mulher e o filho de quatro anos. "Comemos
uma vez por dia, apenas arroz."
Ironicamente, um dos poucos prédios que sobreviveram é
o hospital, mas o prédio está vazio: nunca chegou a receber
médicos e equipamentos.
Ajuda tardia
Sem hospital, várias centenas de feridos e seus familiares
formaram um acampamento
diante da Escola de Enfermagem, também aparentemente
intacta. Mas até anteontem,
quando chegou uma missão de
seis pessoas da ONG Médicos
Sem Fronteiras (MSF), o atendimento era feito por apenas
um médico haitiano e as enfermeiras da escola.
Ontem, Leogane finalmente
recebeu uma equipe médica
com 25 japoneses, que montaram um moderno hospital de
campanha, com grandes barracas brancas tubulares e equipamentos como gerador e mesas
cirúrgicas.
Mas, para muitos pacientes,
mesmo ainda vivos, a ajuda
chegou tarde demais.
"Não podemos atender muito ao mesmo tempo. Se o tratamento não for bom, muitos irão
morrer. Temos de atender bem
os poucos para poder salvar as
suas vidas", disse, visivelmente
abalado, o médico tcheco da
MSF Yan Trachta a um colega.
Em volta dele, ao menos dez
pacientes com profundas infecções e gangrenas em várias partes do corpo -uma mulher havia perdido metade da carne de
um pé, os ossos à mostra.
Algumas crianças também
traziam feridas graves. Uma delas, de quatro anos, tinha uma
grande infecção na cabeça, o
osso exposto.
Do lado de fora, uma mulher
se desesperava ao ver o corpo
da mãe ser carregado para fora
do hospital, envolvido num lençol branco.
Num terreno ao lado, militares do Sri Lanka abriam um
grande buraco, para ser usado
de vala comum.
Minutos antes, Trachta havia
tido uma discussão com um
membro da equipe japonesa,
que aparentemente defendia
aceitar mais pessoas que esperavam fora. "Temos filosofias
diferentes, é melhor trabalharmos separados."
Como o atendimento é recente, a MSF não terminou de
levantar o número de feridos à
espera de atendimento. Segundo o responsável pela admissão
ao Colégio de Enfermeiras, onde estão ambas as equipes, cerca de 2.000 pessoas já estiveram no local em seis dias.
"Estamos tentando atender
os que estão em pior estado, há
infecções muito, muito avançadas", afirmou o canadense Gilles Bocage, 46, também do
MSF. Com ampla experiência
em países africanos como Congo, Sudão e Angola, disse que "é
a pior situação em que já estive,
pelo número de feridos".
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