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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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Bagdá prepara-se para enfrentar perigos inimagináveis

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

A escuridão começa a surgir, aquela névoa de ansiedade que cerca as pessoas quando elas compreendem que estão enfrentando perigos inimagináveis. Não são apenas as milhares de lojas vazias e trancadas em Bagdá, cujos donos estão transportando as mercadorias para casa com medo de saques. E não se trata sequer da visão de barcaças de concreto ao longo do rio Tigre para cuidar do transporte caso os ataques norte-americanos destruam as grandes pontes que cruzam o rio. É um sentimento -e estou citando um morador de Bagdá há um quarto de século- de que "a cola se desfará e não restará nada que mantenha as pessoas unidas".
O pesadelo não é tanto o de um bombardeio cruel do Iraque, cuja inevitabilidade agora está assegurada, mas o da crescente convicção de que uma invasão anglo-americana provocará uma guerra civil, de xiitas contra sunitas, de sunitas contra curdos, de curdos contra turcomanos. Dirigindo pelas ruas das grandes favelas xiitas em Saddam City, é possível compreender os temores da minoria sunita, de que os pobres invadirão as ruas de Bagdá em hordas de dezenas de milhares para pilhar os bairros mais prósperos assim que a autoridade central cair.
Que falta de fineza, vocês podem dizer. Será que os xiitas não foram o grupo mais reprimido no Iraque ao longo das últimas décadas? Em torno de Bagdá, as pessoas percebem a presença da Guarda Republicana; seus postos de controle vêm-se tornando mais impressionantes. A principal rodovia para o norte do Iraque está fechada há três dias, e assim as linhas gerais de um cerco já estão mais ou menos definidas.
Membros do governo estão falando agora de um toque de recolher diurno e noturno, enquanto durarem os bombardeios.
Na Guerra do Golfo, em 1991, os moradores de Bagdá lotaram suas geladeiras de carne e descobriram que a destruição das redes de eletricidade pelos ataques americanos fez com que toda essa comida apodrecesse em horas. Agora, estão comendo tudo o que suas geladeiras contêm e comprando toneladas de pão, biscoitos, tâmaras e frutas secas. Milhares de usuários de e-mail no Iraque vêm recebendo mensagens anônimas em árabe delineando os tratamentos médicos que devem ser empregados em caso de ataque químico ou biológico. Os e-mails não sugerem quem poderia usar essas armas de destruição em massa.
Os e-mails não mencionam algo que os norte-americanos provavelmente prefeririam esconder: o fato de que eles pretendem usar sem reservas sua munição com base de urânio, conhecida como DU. Dezenas de milhares de pacientes da síndrome da Guerra do Golfo e um número crescente de médicos acreditam que emanações desses projéteis especiais para perfurar blindagens tenham causado surtos de câncer, especialmente na região de Basra, onde foram usados há 12 anos.
Agora, no entanto, em declarações que passaram virtualmente ignoradas fora do Kuait, o general Buford Blount, da 3ª Divisão de Infantaria norte-americana, admitiu francamente que seus soldados estariam uma vez mais usando projéteis DU na batalha pelo Iraque. "Se recebermos a ordem de atacar, os preparativos finais só demorarão alguns dias", declarou. "Já começamos a desembrulhar nossos projéteis antitanques de urânio."
Assim, com o relógio marcando cinco minutos para a meia-noite, quem parece ser o homem mais confiante do Iraque? Na televisão estatal, ontem, ele voltou a aparecer, insistindo em que suas forças destruirão as tropas invasoras norte-americanas e que as mães norte-americanas chorariam lágrimas de sangue.
Ele estava de uniforme e sorria confiantemente, como sempre. Talvez haja algum reconforto a ser extraído das palavras do Grande Líder. Anteontem, enquanto Bush lhe dava 48 horas para partir rumo ao exílio, Saddam regalava o mundo com suas garantias.
"Quando Saddam Hussein diz que não temos armas de destruição em massa, isso quer dizer que ele quer dizer o que diz", explicou. E então mais uma dose da retórica já familiar: "Se os Estados Unidos atacarem, encontrarão combatentes iraquianos por trás de cada pedra, muro ou árvore, em defesa de sua terra e liberdade".
Há duas semanas, Saddam dizia aos seus soldados que "toda essa conversa sobre as armas que os norte-americanos têm" era bobagem. "Devemos planejar com base em campos de batalha em toda parte, um campo de batalha onde quer que as pessoas estejam". Orwelliano não é o adjetivo certo para ele. Enquanto um quarto de milhão de soldados americanos se preparavam para invadir o Iraque, o jornal "Babylon", de Bagdá, informava, ontem, que "o presidente Saddam Hussein, que Deus o preserve, recebeu um telegrama do Ministério da Indústria e Minerais, pelo aniversário da visita de Sua Excelência às fábricas de laticínios em Abu Ghoraib, em 16 de março de 1978".
Laticínios? Não era sobre isso que Saddam Hussein estava pensando 13 anos atrás ao dizer a um estudante britânico refém, pouco antes de libertá-lo, que ele deveria "lembrar-se sempre de tomar leite a cada dia"? Mas a declaração que o mundo esperava ouvir do líder iraquiano veio de um de seus representantes. "O presidente nasceu no Iraque e vai morrer no Iraque", afirmou.


Tradução de Clara Allain


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