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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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ANÁLISE

A doutrina de guerra de Bush

DAVID SANGER
DO "THE NEW YORK TIMES"

Ao anunciar anteontem à noite que optara pela guerra, o presidente dos EUA, George W. Bush, pôs fim ao debate sobre quem tem o direito de impor a aplicação de resoluções das Nações Unidas ou o de derrubar regimes brutais.
O argumento se resume a um preceito: numa era de inimigos invisíveis que não fazem declarações formais de guerra, esperar para agir depois que os inimigos dos EUA "façam o primeiro ataque não é autodefesa, é suicídio".
Bush introduziu assim a primeira nova estratégia de segurança nacional dos EUA em 50 anos -a doutrina de ação militar preventiva contra inimigos- na forma de uma justificativa para a mais recente guerra americana.
Trata-se de uma visão do papel dos EUA que Bush jamais discutiu enquanto disputava a Presidência, época em que preferia falar sobre a necessidade de uma abordagem "humilde" com relação ao mundo. Mas ele começou a adotar essa posição poucos meses depois de ocupar o cargo, e ela se tornou uma ardente paixão depois do 11 de setembro de 2001.
Discursando na Casa Branca anteontem, Bush parecia estar completando essa evolução, descrevendo os EUA como virtuais portadores do dever de policiar o mundo, caso a ONU não o cumpra, e dando a Saddam Hussein 48 horas para sair do Iraque.
O discurso marca o ponto culminante da ruptura que já vinha se desenvolvendo há meses com a ONU e com dois dos mais próximos aliados americanos no pós-guerra, a França e a Alemanha. As palavras de Bush quase que certamente confirmaram alguns dos piores temores do mundo sobre os EUA que ele preside: quando a ONU não se dobra à sua vontade, quando os aliados não querem acompanhá-lo, Bush simplesmente age só e puxa o gatilho.
"Para eles, isso demonstrará que todo esse esforço envolvendo a ONU era um exercício de futilidade e que é isso o que o presidente planejava fazer o tempo todo", disse Stanley Hoffmann, professor da Universidade Harvard que passou a vida estudando a guerra e a aliança transatlântica. "Não existe espaço na carta das Nações Unidas para a doutrina de ação preventiva, de autodefesa antecipada, proposta por Bush".
Mas Bush não estava falando à Europa anteontem. Estava falando primeiro à população dos EUA, explicando uma guerra que parece inevitável dentro de alguns dias e retratando-a como questão de sobrevivência nacional. E falava também ao povo do Iraque em transmissões de rádio traduzidas e transmitidas para o país, prometendo comida e liberdade:
"Em um Iraque livre não haverá mais guerras de agressão contra os vizinhos, fábricas de veneno, execuções de dissidentes, câmaras de tortura ou salas de estupro. O tirano em breve terá partido. O dia da libertação se aproxima".
As palavras de Bush remontam, de muitas maneiras, à era da Segunda Guerra Mundial, um período de desafios muito mais claros e de ameaças mais óbvias. Ele retratou a ameaça iraquiana como tão grande e iminente que representa um desafio à sobrevivência dos EUA, argumentos que seus críticos já vinham alegando ser um exagero para justificar uma guerra preventiva.
Bush descreveu Saddam como um Hitler moderno, que os EUA e seus aliados devem enfrentar. Comparou abertamente a ONU e os países que rechaçam a guerra às nações que fecharam os olhos ao rearmamento da Alemanha nazista. Mas é improvável que o resto do mundo veja o confronto assim, e esse pode ser apenas o primeiro dos muitos desafios a superar à medida que Bush transforma a doutrina da prevenção em uma guerra preventiva.
Na Europa, a mensagem com certeza se enquadrará bem à imagem favorita de Bush como um caubói sempre com o dedo no gatilho. No passado, a Casa Branca sempre descreveu essa visão como uma caricatura grotesca, que tinha por objetivo exagerar as posições de Bush de maneira a desacreditá-las. Mas agora aliados e assessores de Bush decidiram que essa imagem pode ter suas vantagens. "Como homem do oeste, não acho que isso seja necessariamente uma má idéia", disse o vice-presidente Dick Cheney . "É o que a circunstância requer".
O que surpreendeu o mundo é a audácia com que Bush levou adiante a sua visão a ponto de hoje estar preparando planos detalhados para fazer do Iraque um protetorado pelo tempo que for necessário para "pacificar" o país.
Muitos, incluindo líderes republicanos e membros do governo, temem que o processo se torne uma armadilha para a nova doutrina de Bush. Na visão otimista do governo, Saddam será derrubado em dias, esperam, quando suas forças se curvarem à advertência de Bush de que deveriam se render e que seria tolice "lutar por um regime moribundo". O que virá a seguir, esperam, é o júbilo iraquiano e uma transição sob administração dos EUA aceita pelo país. Mas, em momentos de franqueza, até mesmo alguns dos mais importantes assessores de Bush dizem não ter idéia do que irão encontrar ao remover a tampa da ditadura de Saddam.
"Se não for como o Japão do pós-guerra, se for mais como a Iugoslávia do pós-guerra, teremos um imenso e dispendioso problema", reconheceu um desses assessores. "E não posso honestamente dizer que estamos preparados para isso, porque não há maneira de nos preparamos".
"Nós vamos querer que alguém pague por isso", disse Joseph Nye, diretor da Escola Kennedy de Administração Pública, na Universidade Harvard. "E é essa a hora em que se descobre o custo de confiar demais na eficiência e não o bastante no estabelecimento da legitimidade de suas ações militares".
A outra questão é definir se Bush conduzirá sua doutrina ao que seria seu próximo patamar lógico: o de deter outros países que representam ameaça ainda maior de proliferação.
Coréia do Norte? A escolha parece óbvia, mas o país pode contra-atacar de maneiras com que Saddam apenas sonha, atingindo soldados e aliados dos EUA. Irã? Talvez, mas há um movimento pela democracia no país que sofreria imensamente em caso de interferência americana.
Mas ambos os países representam ameaças potenciais aos EUA pelo menos tão iminentes quanto as do Iraque. E não são apenas pontos no "eixo do mal" do presidente, mas também alvos dos membros mais belicosos do governo Bush, que acabam de vencer o debate quanto ao Iraque.


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