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São Paulo, segunda-feira, 19 de maio de 2003

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Herança econômica será pesada

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Néstor Kirchner assume a Presidência da Argentina, no próximo dia 25 de maio, sob o mesmo tipo de dupla pressão que enfrentou o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva: atender, de um lado, as ansiedades do mercado para que não haja modificações substanciais na política econômica e, de outro, a urgência da sociedade em ver enfrentadas questões essenciais como trabalho e pobreza.
A grande diferença é que a situação argentina, paradoxalmente, pode ser vista como mais complicada ou mais facilitada do que a que Lula encontrou, conforme o ponto de vista.
No Brasil, os mercados temiam que o PT não pagasse a dívida, rompesse contratos, permitisse a disparada da inflação. Na Argentina, tudo isso, de algum modo, já aconteceu.
Ou, como prefere Julio Nudler, analista econômico do jornal esquerdista "Página/12":
"O trabalho sujo foi feito por [Fernando] De la Rúa (corralito), Adolfo Rodríguez Saá (moratória), e Eduardo Duhalde (desvalorização, pesificação, ajuste fiscal). A economia não está hoje precipitando-se no abismo, mas saindo lentamente dele. Arrasta problemas terríveis (dívida, desemprego, miséria, descapitalização dos bancos, desinvestimento, tarifas públicas) mas nenhum deles detona de um dia para o outro. São mais profundos que explosivos".

Operação complicada
Visto por outro ângulo, no entanto, pode ser pior: Kirchner, em vez de recorrer à moratória, como foi obrigado a fazer Adolfo Rodríguez Saá, terá que suspendê-la, uma operação sempre complicada, mas vital para restabelecer o crédito para a Argentina.
Terá também que restabelecer segurança jurídica para que os bancos voltem a fazer a sua função, que é a de intermediação financeira (emprestar dinheiro).
Passou o tempo em que se temia o colapso do sistema financeiro, no pressuposto de que, levantado o "corralito", todos os depositantes correriam para sacar dinheiro dos bancos. Não sacaram, até porque deixá-lo investido a juros suculentos está sendo melhor, por exemplo, do que apostar no dólar, em queda contínua.
Hoje, o problema do sistema financeiro são as regras do jogo. Como emprestar se não há segurança de que o dinheiro vai voltar e, se não voltar, será possível recuperá-lo tomando posse das garantias oferecidas pelo devedor?
Também ao contrário de Lula, que recebeu um país com baixo crescimento e perspectiva imediata ruim, Kirchner encontra uma Argentina em que o setor produtivo exibe um otimismo talvez exagerado.
Documento recente da UIA (União Industrial Argentina) diz que a recuperação dos últimos quatro trimestres é tão forte que, "até o fim do ano se alcançariam os níveis de produção de 1998, quando a economia começou a cair na recessão".
A partir daí, se entraria em "uma nova etapa de crescimento".
Só assim mesmo o novo governo poderá ter, eventualmente, condições para enfrentar o outro tipo de pressão, o da rua.
A situação social é a mais dramática da história (ver quadro), quase tão dramática quanto a do Brasil, mas com uma diferença anímica fundamental: é um fenômeno de recente aparição em um país que chegou a estar entre os sete mais ricos do mundo em meados do século passado.
É natural, portanto, que a oposição de esquerda ao governo Kirchner cobre do virtual novo presidente que atenda à rua mais que aos mercados.
"A Kirchner restará a legitimidade da gestão, restará pôr no centro de seu governo a agenda das reivindicações sociais", diz Rafael Romá, que foi o chefe de campanha presidencial da deputada Elisa "Lilita" Carrió, de centro-esquerda.



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