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GUERRA SEM LIMITES
Passado o choque dos atentados, começam os conflitos sobre quem tem direito ao patrimônio das vítimas
Famílias disputam espólio de mortos no WTC
DAVID W. CHEN
DO "THE NEW YORK TIMES"
Por um período impressivamente longo, pareceu que todos conseguiram se dar bem.
Nas semanas e meses após os ataques terroristas, enquanto funerais e testes de DNA pingavam, muitas famílias de vítimas do 11 de setembro, estóicas e chocadas,
tentaram viver em um universo livre de rancores. Disputas familiares foram suspensas. Parentes
menos queridos foram abraçados
com sorrisos. Perguntas sobre dinheiro, status e herança não foram feitas, ou simplesmente esquecidas.
Mas, agora, as famílias têm de
enfrentar a tarefa de determinar
quem tem direito a que nos espólios das vítimas, e conflitos
-grandes e pequenos- estão
começando a irromper, tornando
ainda piores a tristeza, a dor e a
raiva de famílias já gravemente feridas.
Em nenhuma outra instância
essas fraturas familiares são mais
evidentes do que no trabalho do
Fundo de Indenização de Vítimas
do governo federal, plano multibilionário cujo objetivo é conceder aos herdeiros das vítimas dinheiro suficiente para lhes dar segurança. Com milhões de dólares
em jogo, dezenas de famílias já estão brigando em salas de estar e
tribunais, ao vivo e no papel.
Questionamentos
Uma mãe está questionando a
legitimidade do casamento de sua
filha com um marido que se distanciara. Os filhos adultos do primeiro casamento de uma das vítimas estão questionando o status
do segundo casamento da vítima,
assim como o dos filhos da união.
Uma parceira que não era casada
mas dividia dois filhos pequenos e
uma hipoteca com outra vítima
está brigando com o filho adolescente dele, nascido de uma união
anterior.
"É triste, mas é a natureza humana", disse Maura Lafan, uma
advogada de Long Island que representa duas famílias de vítimas.
"Primeiro, todo mundo estava
tão chocado e horrorizado que
outras coisas se tornaram menos
importantes. Mas depois você
percebe que todas essas coisinhas
de família ainda existem. Não é
tão simples quanto gostaríamos."
Enfrentar o difícil processo da
partilha dos bens é raramente fácil para qualquer família. Mas, como esse processo em particular
envolve o 11 de setembro, como
há muito mais investigações por
se tratar de um fundo governamental de estimados US$ 4 bilhões, como disputas de família
têm de ser resolvidas antes de os
prêmios serem determinados, é
natural, dizem advogados e famílias, que as pessoas se sintam ainda mais estressadas.
Certamente, muitas famílias estão lutando para chegar a algum
tipo de trégua quando necessário,
seja entre pais e irmãos ou entre
familiares por relacionamentos
passados que, de repente, estão
entrando em cena de novo para
pedir indenização. Mas poucos
esperam alguma solução em um
futuro próximo.
Concorrentes
De 500 representantes de vítimas que já se registraram no fundo, cerca de 40 já têm familiares registrando representações concorrentes. O prêmio estimado deve ser de US$ 1,5 milhão por vítima.
Virginia Pacheco e Annie Guerrero são um exemplo.
Virginia, moradora do
Brooklyn, registrou um pedido
para ser a representante responsável por gerenciar a indenização
do prêmio de seu filho, Roland,
que morreu nos ataques. Annie
era a namorada dele e mãe de seu
filho e registrou um pedido concorrente.
"Ela era como uma irmã para
mim", disse Dinah Pacheco, a filha de Virginia, sobre Annie.
"Mas, depois de 11 de setembro,
não sei o que aconteceu. É como
se ela fosse outra pessoa."
As próprias normas do fundo
de indenização, dizem muitas famílias, parecem promover a discórdia.
Se a vítima não tiver feito um
testamento, a família precisa nomear um representante -geralmente o cônjuge, filho ou pai da
vítima, nessa ordem de preferência- sob os auspícios de um juiz.
O representante precisa então elaborar um plano de partilha do
prêmio.
Depois, o representante deve
notificar todos os parentes e, segundo as normas, "quaisquer outras pessoas que se pode razoavelmente esperar que declarem interesse no prêmio ou que tenham
base para uma ação relacionada à
morte da pessoa".
"Recebemos muitos telefonemas de pessoas tentando resolver
quem deve ser o representante,
como resolver disputas", disse
Kenneth Feinberg, que administra o fundo. "É impossível saber
pelo que eles estão passando, mas
tenho verdadeira empatia com
eles, pelo que eles têm de lidar."
As variações parecem infinitas,
assim como as possibilidades de
mal-entendidos. Vítimas que
eram solteiras e não tinham namorados; cônjuges de fato, mas
não legalmente casados, que não
são reconhecidos pela lei de Nova
York; estrangeiros que tinham famílias em dois países; famílias que
não conseguem entrar em acordo
discutem se devem se registrar no
fundo do governo ou processar as
companhias aéreas; e várias outras circunstâncias.
De repente, para alguns, o prazo
para se registrar no fundo -dezembro de 2003- não parece tão
distante.
Um parente de uma vítima disse
que foi forçado a se registrar só
para bloquear o registro de outro
membro da família -apesar de
afirmar que não tinha nenhuma
intenção de fazê-lo inicialmente
porque considerava o fundo "dinheiro sangrento".
Outros disseram que nem sabiam que um familiar havia se registrado até serem informados
por um repórter.
Uma viúva afirmou que, quando ela descobriu acidentalmente
que um parente havia se registrado primeiro como representante,
ela teve de juntar extratos bancários, cheques para pagar o aluguel
e outros registros relativos ao período de um ano para demonstrar
que a vítima não estava sustentando a família dos representantes rivais e, portanto, eles estavam
desqualificados para ser beneficiários.
Ela disse que acabou vencendo
a disputa, mas seu rancor não diminuiu.
"O dinheiro faz emergir coisas
estranhas nas pessoas", afirmou.
"Eu tive de dizer a Feinberg que
eles não tinham direito à indenização, e agora eles não falam mais
comigo. É muito triste."
Feinberg diz ser sensível às dificuldades. Em uma reunião no último fim de semana em Jersey
City (Nova Jersey), ele disse a parentes de vítimas que queria reduzir as discórdias familiares, mas
seus comentários não sensibilizaram todos.
"O que eles têm a ver com o que
acontece com meus filhos?", perguntou Elizabeth Mattson, cujo
marido, Robert, que trabalhava
no Fiduciary Bank, morreu. "Você disse que não queria se envolver em disputas de família. Isso
cria uma disputa", disse ela a
Feinberg.
Poucos minutos depois, outra
pessoa perguntou: "Como você
evita registros fraudulentos, ou
notificações inadequadas?" A resposta, afirmou Feinberg, foi: a
ameaça de perjúrio.
"Vocês também podem consultar a lista de registrados no site do
fundo, que é www.usdoj.gov/victimcompensation", acrescentou Feinberg.
Algumas pessoas estão recorrendo a amigos, padres ou outros para mediar as disputas. A Trial Lawyers Care, que oferece aconselhamento jurídico gratuito a famílias de vítimas do 11 de setembro, já tem cerca de 12 casos nos
quais está representando lados rivais de uma mesma família para
"injetar um grupo de mentes neutras, bastante objetivas, no processo", disse William Mauk, diretor do grupo.
Ainda assim, algumas famílias dizem temer que o histórico de brigas seja demasiado para permitir um final feliz para todos.
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