São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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Ex-militares têm situação indefinida

DO ENVIADO ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE

A desmobilização de cerca de 350 ex-militares, uma das iniciativas mais bem sucedidas até agora da missão de paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah) para a volta do país à normalidade, está emperrada há três meses e corre o risco de ir por água abaixo devido à indefinição do governo interino sobre o futuro dos que decidiram baixar as armas.
Realizado com o aval da ONU, o acordo da desmobilização é considerado um dos principais motivos do baixo nível de violência no interior do país e prevê, por parte do governo interino, a reinserção dos ex-militares na vida civil, sobretudo o aproveitamento na corrupta e violenta polícia haitiana e o pagamento de pensões.
Até agora, no entanto, apenas 17 dos ex-militares desmobilizados em março foram aproveitados pela polícia. O restante permanece confinado nas instalações da Escola de Magistratura, em Porto Príncipe, sob proteção permanente de soldados brasileiros -outros milhares continuam de fora do programa. Na última quarta-feira, a reportagem da Folha visitou o local e conversou com alguns dos ex-militares vindos de Cap Haitien, a segunda maior cidade do país, com 500 mil habitantes.
"Nós trabalhamos com um conceito de três letras, o DDR: desarmamento, desmobilização e reinserção", afirma o comandante militar da Minustah, o general brasileiro Augusto Heleno Pereira. "E a terceira letra tem sido o grande problema."
A questão sobre o que fazer com o grupo é um dos principais nós políticos do país desde 1994, quando o então presidente Jean-Bertrand Aristide dissolveu as Forças Armadas.
Não são poucos os obstáculos para a reinserção dos ex-militares. Segundo o general Heleno, vários deles nunca foram das Forças Armadas, mas acabaram recrutados por ex-militares, de uma forma mais parecida com as inúmeras gangues criminosas do país do que com um Exército regular. O mais novo do grupo de Cap Haitien, por exemplo, tinha apenas oito anos quando as Forças Armadas foram extintas.
Além disso, vários ex-militares estão envolvidos em crimes como assassinatos e violência política -eles tiveram um papel importante no sangrento levante que provocou a derrubada de Aristide, em fevereiro de 2004. Há ainda problemas de saúde e físicos, e muitos têm idade avançada.
Mas o pior problema é o relacionamento com os policiais. Nos últimos meses, houve inúmeros enfrentamentos, com mortos de ambos os lados. Recentemente, o principal líder dos ex-militares, Remissainthe Ravix, que comandou diversos ataques a delegacias de polícia num levante contra o governo, foi morto num desses incidentes, em Porto Príncipe.
A tensão entre policiais e ex-militares é uma das principais preocupações dos militares brasileiros -vários dos que estão sob proteção na capital estariam ameaçados de morte. Além disso, há o confronto histórico com os grupos armados pró-Aristide.
"Só não saímos daqui porque não temos nenhum dinheiro e porque podemos acabar mortos pelos policiais e pelo chimères [grupos armados pró-Aristide]", explica o ex-soldado Pierre Etchot, 40.
Durante esses três meses, nenhum dos ex-militares trabalhou. Eles passam a maior parte do dia parados, ouvindo rádio ou assistindo à TV. Cerca de 25 ex-militares já cansaram de esperar e abandonaram o programa de desmobilização. "O risco é que eles percam a paciência e comecem a sair e pegar em armas novamente", afirma o general Heleno.
Divididos por cidade, cada grupo ex-militar ocupa um dos prédios da escola. O maior contingente é de Cap Haitien, com cerca de 250 pessoas.
Cercado por seus companheiros, o ex-soldado Pierre Raymond disse que a indefinição do governo faz com que os demais ex-militares -cerca de 7.000, muitos deles armados e alguns ocupando postos policiais- resistam em se desmobilizar.
"Como o governo havia prometido resolver a situação dos ex-militares e nada fez, a falta de sinceridade impede que os outros ex-militares se rendam", afirma Raymond, que diz estar em Porto Príncipe desde o início de março. Desde então, não se encontra com a mulher e os nove filhos, com idades entre 3 e 17 anos. A reportagem deixou diversos recados no gabinete do primeiro-ministro, Gérard Latortue, e na Casa Civil, mas não obteve nenhuma resposta. (FM)


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