São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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AMÉRICA DO SUL

Para antropólogo argentino Walter Mignolo, movimentos indígenas buscam alternativa à organização colonialista

Raça origina conflito andino, diz estudioso

Jorge Saenz/Associated Press
Indígena boliviana participa de jornada de protestos com agricultores na região central de La Paz


CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DA SUCURSAL DO RIO

Professor de antropologia cultural e literatura na Universidade Duke (EUA), o argentino Walter Mignolo defende que raça é uma categoria mais importante do que a de classe na determinação dos conflitos sociais na América Latina, especialmente nos países andinos como Bolívia e Equador.
"Classe é uma categoria da história européia, que se tornou evidente com a Revolução Industrial, mas raça é conseqüência da "Revolução Colonial" no século 16", diz Mignolo.
Para o antropólogo, as recentes revoltas populares em países latino-americanos marcam uma "mudança descolonizante", uma busca de alternativas ao saber e à organização do mundo herdados do colonialismo, "contra a crença de que a Europa pode criar tanto os problemas quanto as soluções para o resto do mundo".
Leia os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha, por e-mail.
 

Folha - O fator racial é determinante nos conflitos sociais em países como Bolívia, Equador e Peru?
Walter Mignolo-
Eu diria que "raça" é a categoria sobre a qual foram construídos o mundo moderno-colonial e as Américas. O fato de que hoje o racismo seja mais visível e explosivo na Bolívia, no Equador e no Peru tem a ver com a história da conquista e da colonização dos Andes. Raça e racismo são igualmente importantes nos EUA.
Classe é uma categoria da história européia que se tornou evidente com a Revolução Industrial, mas raça é conseqüência da "Revolução Colonial", a conquista e a colonização portuguesa e espanhola no século 16. Só um pré-julgamento eurocêntrico põe as classes como motor da história e o racismo como uma categoria derivada delas. Lewis Gordon, filósofo jamaicano que vive nos EUA, observa que classe é uma categoria tão intrínseca ao ambiente europeu que ela aparece nas experiências socialistas européias.
Nos EUA, o esforço para ser diferente da Europa e, ao mesmo tempo, manter a conexão com ela, como parte do hemisfério ocidental, deu-se mediante a incorporação de uma identidade européia homogênea sob a forma da "branquitude". Essa premissa colocava a branquitude no topo, ao mesmo tempo em que os brancos classificavam os outros, que caíam na escala dos seres humanos. A raça tornou-se o elemento endêmico da consciência do Novo Mundo.

Folha - Pela idéia iluminista de progresso, uma raça branca e européia estaria num estágio mais avançado do que as demais. O atual impulso dos movimentos indígenas na América Latina pode ser relacionado ao questionamento da idéia de progresso?
Mignolo -
A idéia de que uma raça é superior à outra não foi herdada do Iluminismo, mas da Renascença. O alicerce racial do mundo moderno foi estabelecido no século 16 e deveu-se a crenças religiosas, na Europa em relação aos mouros e aos judeus, e à cor da pele, nas Américas. Os cristãos reivindicavam sua superioridade em relação às religiões "inferiores" -judeus, muçulmanos e, no fim do século 16, os credos asiáticos- e às não-religiões dos índios e africanos.
Isso, em resumo, é a concepção de Aníbal Quijano sobre a matriz colonial do poder: uma raça "superior", os cristãos, detinha o poder do conhecimento e foi capaz de criar e transmitir um ranking dos seres humanos. Se fôssemos rever a teoria da dependência, iríamos nos dar conta de que a dependência econômica está muito ligada à classificação racial da população mundial. O racismo não é uma questão de cor da pele, mas da hierarquização dos seres humanos feita pelos que têm poder.
Quanto aos movimentos indígenas, acredito que a idéia de progresso nunca foi comprada por eles. Não existe modernidade sem colonialidade, e a retórica da modernidade -salvação, civilização, modernização- sempre esconde a lógica da colonialidade: racismo, exploração e opressão.

Folha - Que novidades o senhor encontrou em sua visita recente à Bolívia?
Mignolo -
Não houve muitas mudanças em relação à revolta de outubro de 2003 [que levou à renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada], quando se sentiu que alguma coisa mudou radicalmente e que a Bolívia não seria mais a mesma. O que ficou patente foi o colapso do sistema de governo, daí a proposta da Constituinte.
Também existe a emergência em 2000 e o barulho cada vez maior feito pelo movimento Nação Camba em Santa Cruz de la Sierra. O interessante é que o poder econômico de Santa Cruz está sendo articulado por meio de um discurso de "política de identidade", geralmente atribuído às minorias e aos setores dissidentes da sociedade civil. Agora, essas políticas de identidade são articuladas pela direita. O último livro de Samuel Huntington ["Who are We? The Challenges to America's National Identity"] é pura política identitária em defesa da população branca e anglo-saxã do Nordeste dos EUA. A Nação Camba é algo similar na Bolívia.

Folha - Como o senhor analisa a divisão política entre movimentos indígenas na Bolívia, com líderes como Evo Morales, Abel Mamani e Felipe Quispe divergindo?
Mignolo -
É essencial aceitar que não deve necessariamente haver um pensamento homogêneo entre intelectuais indígenas e líderes de movimentos sociais. Isso é uma suposição ardilosa: índios ou negros devem todos ir à missa juntos, mas brancos e europeus podem ser diferentes. Há divergências entre eles, mas existem chances de que, num momento de crise, elas sejam superadas e eles se unam. O que é crucial é que, além das diferenças, os três compartilham uma convicção: a de que a liberação significa descolonização. Isso os une contra o neoliberalismo de um modo que não pode ser reduzido às premissas marxistas.
A experiência histórica do ayllu [organização social do império inca] é o horizonte político, econômico e subjetivo de um "sistema comunal" que é alternativo tanto ao sistema neoliberal quanto ao socialista em termos marxistas. Há a tendência de acreditar que um sistema comunal baseado nessa experiência corre o risco do fundamentalismo. Pode ser, mas não há lugar seguro.

Folha - O alargamento das diferenças sociais nos EUA, ao lado de declarações como a do cientista político Samuel Huntington sobre a impossibilidade de integrar a população latina, põem em questão a eficácia do multiculturalismo?
Mignolo -
Do ponto de vista dos intelectuais radicais negros e latinos radicais nos EUA, a palavra é interculturalidade, e não multiculturalismo. Qual a diferença? Multiculturalismo que representa a visão do Estado: deixe que façam suas coisas e nós mantemos o poder econômico, político e epistemológico. Já a interculturalidade reivindica o direito de intervenção e participação em um Estado plurinacional. Enquanto no multiculturalismo a questão é a integração no status quo, o desafio levantado pela interculturalidade põe em questão as bases da teoria política e da economia política atuais.

Folha - Como o senhor relacionaria o movimento que levou à queda do presidente Fernando de la Rúa na Argentina, em 2001, e as revoltas no Equador e no Peru?
Mignolo -
O que me chamou a atenção na Argentina foi que, a partir da necessidade, a sociedade descobriu um senso profundo de solidariedade. Na Bolívia e no Equador, a solidariedade dos indígenas diante de um Estado que os ignorou por 500 anos está firmemente enraizada na subjetividade e nas memórias.
Em segundo lugar, a revolta na Argentina não veio da aplicação de experiências marxistas na Rússia ou em Cuba, mas da experiência e da raiva das pessoas em relação a sua própria condição. Nesse sentido, o que a revolta na Argentina e os movimentos no Equador e na Bolívia têm em comum é a concepção e a prática de uma política diferente, o que eu chamo de mudança descolonizante, contra a crença de que a Europa pode criar os problemas e as soluções para o resto do mundo.


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