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AMÉRICA DO SUL
Para antropólogo argentino Walter Mignolo, movimentos indígenas buscam alternativa à organização colonialista
Raça origina conflito andino, diz estudioso
Jorge Saenz/Associated Press
![](../images/e1906200501.jpg) |
Indígena boliviana participa de jornada de protestos com agricultores na região central de La Paz |
CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DA SUCURSAL DO RIO
Professor de antropologia cultural e literatura na Universidade
Duke (EUA), o argentino Walter
Mignolo defende que raça é uma
categoria mais importante do que
a de classe na determinação dos
conflitos sociais na América Latina, especialmente nos países andinos como Bolívia e Equador.
"Classe é uma categoria da história européia, que se tornou evidente com a Revolução Industrial, mas raça é conseqüência da
"Revolução Colonial" no século
16", diz Mignolo.
Para o antropólogo, as recentes
revoltas populares em países latino-americanos marcam uma
"mudança descolonizante", uma
busca de alternativas ao saber e à
organização do mundo herdados
do colonialismo, "contra a crença
de que a Europa pode criar tanto
os problemas quanto as soluções
para o resto do mundo".
Leia os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha,
por e-mail.
Folha - O fator racial é determinante nos conflitos sociais em países como Bolívia, Equador e Peru?
Walter Mignolo- Eu diria que
"raça" é a categoria sobre a qual
foram construídos o mundo moderno-colonial e as Américas. O
fato de que hoje o racismo seja
mais visível e explosivo na Bolívia,
no Equador e no Peru tem a ver
com a história da conquista e da
colonização dos Andes. Raça e racismo são igualmente importantes nos EUA.
Classe é uma categoria da história européia que se tornou evidente com a Revolução Industrial, mas raça é conseqüência da
"Revolução Colonial", a conquista e a colonização portuguesa e espanhola no século 16. Só um pré-julgamento eurocêntrico põe as
classes como motor da história e o
racismo como uma categoria derivada delas. Lewis Gordon, filósofo jamaicano que vive nos EUA,
observa que classe é uma categoria tão intrínseca ao ambiente europeu que ela aparece nas experiências socialistas européias.
Nos EUA, o esforço para ser diferente da Europa e, ao mesmo
tempo, manter a conexão com
ela, como parte do hemisfério ocidental, deu-se mediante a incorporação de uma identidade européia homogênea sob a forma da
"branquitude". Essa premissa colocava a branquitude no topo, ao
mesmo tempo em que os brancos
classificavam os outros, que
caíam na escala dos seres humanos. A raça tornou-se o elemento
endêmico da consciência do Novo Mundo.
Folha - Pela idéia iluminista de
progresso, uma raça branca e européia estaria num estágio mais
avançado do que as demais. O
atual impulso dos movimentos indígenas na América Latina pode
ser relacionado ao questionamento da idéia de progresso?
Mignolo - A idéia de que uma raça é superior à outra não foi herdada do Iluminismo, mas da Renascença. O alicerce racial do
mundo moderno foi estabelecido
no século 16 e deveu-se a crenças
religiosas, na Europa em relação
aos mouros e aos judeus, e à cor
da pele, nas Américas. Os cristãos
reivindicavam sua superioridade
em relação às religiões "inferiores" -judeus, muçulmanos e, no
fim do século 16, os credos asiáticos- e às não-religiões dos índios e africanos.
Isso, em resumo, é a concepção
de Aníbal Quijano sobre a matriz
colonial do poder: uma raça "superior", os cristãos, detinha o poder do conhecimento e foi capaz
de criar e transmitir um ranking
dos seres humanos. Se fôssemos
rever a teoria da dependência,
iríamos nos dar conta de que a dependência econômica está muito
ligada à classificação racial da população mundial. O racismo não é
uma questão de cor da pele, mas
da hierarquização dos seres humanos feita pelos que têm poder.
Quanto aos movimentos indígenas, acredito que a idéia de progresso nunca foi comprada por
eles. Não existe modernidade sem
colonialidade, e a retórica da modernidade -salvação, civilização, modernização- sempre esconde a lógica da colonialidade:
racismo, exploração e opressão.
Folha - Que novidades o senhor
encontrou em sua visita recente à
Bolívia?
Mignolo - Não houve muitas
mudanças em relação à revolta de
outubro de 2003 [que levou à renúncia do presidente Gonzalo
Sánchez de Lozada], quando se
sentiu que alguma coisa mudou
radicalmente e que a Bolívia não
seria mais a mesma. O que ficou
patente foi o colapso do sistema
de governo, daí a proposta da
Constituinte.
Também existe a emergência
em 2000 e o barulho cada vez
maior feito pelo movimento Nação Camba em Santa Cruz de la
Sierra. O interessante é que o poder econômico de Santa Cruz está
sendo articulado por meio de um
discurso de "política de identidade", geralmente atribuído às minorias e aos setores dissidentes da
sociedade civil. Agora, essas políticas de identidade são articuladas
pela direita. O último livro de Samuel Huntington ["Who are We?
The Challenges to America's National Identity"] é pura política
identitária em defesa da população branca e anglo-saxã do Nordeste dos EUA. A Nação Camba é
algo similar na Bolívia.
Folha - Como o senhor analisa a
divisão política entre movimentos
indígenas na Bolívia, com líderes
como Evo Morales, Abel Mamani e
Felipe Quispe divergindo?
Mignolo - É essencial aceitar que
não deve necessariamente haver
um pensamento homogêneo entre intelectuais indígenas e líderes
de movimentos sociais. Isso é
uma suposição ardilosa: índios ou
negros devem todos ir à missa
juntos, mas brancos e europeus
podem ser diferentes. Há divergências entre eles, mas existem
chances de que, num momento
de crise, elas sejam superadas e
eles se unam. O que é crucial é
que, além das diferenças, os três
compartilham uma convicção: a
de que a liberação significa descolonização. Isso os une contra o
neoliberalismo de um modo que
não pode ser reduzido às premissas marxistas.
A experiência histórica do ayllu
[organização social do império
inca] é o horizonte político, econômico e subjetivo de um "sistema comunal" que é alternativo
tanto ao sistema neoliberal quanto ao socialista em termos marxistas. Há a tendência de acreditar
que um sistema comunal baseado
nessa experiência corre o risco do
fundamentalismo. Pode ser, mas
não há lugar seguro.
Folha - O alargamento das diferenças sociais nos EUA, ao lado de
declarações como a do cientista político Samuel Huntington sobre a
impossibilidade de integrar a população latina, põem em questão a
eficácia do multiculturalismo?
Mignolo - Do ponto de vista dos
intelectuais radicais negros e latinos radicais nos EUA, a palavra é
interculturalidade, e não multiculturalismo. Qual a diferença?
Multiculturalismo que representa
a visão do Estado: deixe que façam suas coisas e nós mantemos o
poder econômico, político e epistemológico. Já a interculturalidade reivindica o direito de intervenção e participação em um Estado plurinacional. Enquanto no
multiculturalismo a questão é a
integração no status quo, o desafio levantado pela interculturalidade põe em questão as bases da
teoria política e da economia política atuais.
Folha - Como o senhor relacionaria o movimento que levou à queda
do presidente Fernando de la Rúa
na Argentina, em 2001, e as revoltas no Equador e no Peru?
Mignolo - O que me chamou a
atenção na Argentina foi que, a
partir da necessidade, a sociedade
descobriu um senso profundo de
solidariedade. Na Bolívia e no
Equador, a solidariedade dos indígenas diante de um Estado que
os ignorou por 500 anos está firmemente enraizada na subjetividade e nas memórias.
Em segundo lugar, a revolta na
Argentina não veio da aplicação
de experiências marxistas na Rússia ou em Cuba, mas da experiência e da raiva das pessoas em relação a sua própria condição. Nesse
sentido, o que a revolta na Argentina e os movimentos no Equador
e na Bolívia têm em comum é a
concepção e a prática de uma política diferente, o que eu chamo de
mudança descolonizante, contra
a crença de que a Europa pode
criar os problemas e as soluções
para o resto do mundo.
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