São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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LUTA EM VÃO
Membros da etnia abandonam Kosovo e culpam ditador iugoslavo por fracasso no conflito com a Otan
Sérvios fogem e criticam Milosevic

KENNEDY ALENCAR
enviado especial a Kosovo


Presos em um congestionamento de cerca de 2 km na fronteira norte de Kosovo, sérvios deixavam ontem a Província, rumo ao interior da Sérvia, criticando o presidente iugoslavo, Slobodan Milosevic.
"De que adiantou essa guerra?", pergunta Rodoljub Bulajic, 50, fiscal da alfândega iugoslava em Pristina. Ele está deixando a capital de Kosovo com a mulher e as duas filhas. Às 11h, estava parado havia uma hora na estrada para Belgrado, pouco depois da cidade de Podujevo (a última em Kosovo).
"Nosso país foi destruído, e agora o ELK está nas ruas de Pristina", diz. Para ele, a "mentalidade comunista" de Milosevic afundou o país, e o ditador deveria "sair do governo" (seu mandato vai até o meio de 2001).
Bulajic prefere um político mais "aberto". Menciona Vuk Draskovic, líder do SPO (Movimento de Renovação Sérvio). Milosevic pertencia ao antigo Partido Comunista da Sérvia e hoje lidera o SPS (Partido Socialista da Sérvia).
Durante a guerra de 11 semanas, Draskovic manteve críticas à Otan. Ele foi destituído (em abril) do cargo de vice-premiê da Iugoslávia porque discordava da condução do conflito pelo lado iugoslavo.
"Draskovic tem boas conexões com outros países e pode sair da Sérvia", afirma, referindo-se ao fato de Milosevic e membros de seu governo terem sido acusados de crimes de guerra pelo tribunal internacional da ONU para a ex-Iugoslávia, sediado em Haia (Holanda). "Se Milosevic pôr o pé fora da Sérvia, prendem-no."
Bulajic estava indo para Smederevo, cidade próxima a Belgrado. Ficará na casa de um irmão "por uns dez dias". Acha que, depois desse período, terá uma avaliação mais clara sobre "a segurança" em Kosovo. "Minha mulher está muito nervosa", diz.
Ele começa a fantasiar coisas sobre o ELK (Exército de Libertação de Kosovo). Conta que um helicóptero da Otan transportou um contêiner até a cidade de Lipljan, 20 km ao sul de Pristina. "Dez terroristas do ELK saíram de dentro."
A repetição dessa história absurda mostra como os sérvios estão com medo dos guerrilheiros separatistas do ELK.
Mas, de fato, seus soldados estão retomando posições em todas as cidades de Kosovo, e já ocorreram agressões contra a minoria sérvia na Província.
Soldados da aliança militar ocidental, que não fizeram nada na última quarta-feira ao ver a guerrilha se transformar na polícia da cidade de Prizren, começaram a endurecer nos últimos dois dias com o ELK e a apreender suas armas.
Marija não quer revelar o sobrenome. Está com medo de tudo. Deixou o namorado em Lipljan e viajou com o irmão, a cunhada e uma sobrinha de dez meses para Belgrado. Estavam no engarrafamento.
"Acho que nunca mais voltarei (para Kosovo)", lamenta. Enfermeira, diz que vai tentar recomeçar a vida em Belgrado. "Não sei como. Não há emprego lá."
Ela faz críticas a Milosevic: "Nos levou a uma guerra e agora estamos mais pobres e sem casa".
Ljubisa é um policial de Prokuplje, na Sérvia, que tenta organizar o trânsito depois da fronteira kosovar. "Milosevic tem dinheiro na África do Sul. Não liga para nós", diz, aludindo a eventuais contas secretas que o ditador teria no exterior. Esse é um boato que corre por toda a Iugoslávia.
"É claro que perdemos (a guerra). Quantos sérvios você acha que ficarão em Kosovo? Zero", afirma, num tom impaciente. Para Ljubisa, Kosovo, onde estão monumentos históricos da cultura de sua etnia, nunca mais voltará a ser sérvia. "Perdemos nossas raízes."


A viagem do jornalista Kennedy Alencar é parcialmente custeada pela editora DBA

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