São Paulo, terça-feira, 19 de outubro de 2004

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ANÁLISE

Tenso, mundo aguarda o voto americano

PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"

Os debates terminaram, e agora o mundo aguarda, em suspense, enquanto a campanha presidencial americana entra em sua etapa final. As placas tectônicas geopolíticas ficarão em seus lugares até que cada voto tenha sido contado em Ohio e na Flórida. O britânico Tony Blair praticamente o disse, outro dia, quando prometeu priorizar a paz no Oriente Médio -"a partir de 2 de novembro".
Até então, as linhas diplomáticas que ligam Washington a capitais de Pequim a Bruxelas estarão ocupadas com especulações sobre o que devemos prever -um simples tremor de terra ou um terremoto. Duas semanas atrás, George W. Bush parecia estar quase certo de conseguir um segundo mandato presidencial. Agora os aliados e inimigos dos EUA estão ocupados analisando cuidadosamente cada linha dos pronunciamentos de John Kerry com relação à política pública americana.
Desde a Índia até a Indonésia, os líderes asiáticos vêem com preocupação a promessa feita por Kerry de pôr fim à exportação de empregos americanos. Muitos dos mesmos governos temem que a guerra implacável de Bush contra o terror leve à radicalização ainda mais profunda de suas populações muçulmanas. Em Moscou, os assessores de Putin se perguntam com que firmeza o presidente Kerry se oporia à erosão progressiva da democracia russa. Na Cisjordânia e na faixa de Gaza, os líderes palestinos se desesperam com a fidelidade constante de Bush ao premiê israelense, Ariel Sharon, mas, ao mesmo tempo, questionam até que ponto Kerry fala a sério quando discute o reinício da negociação de paz.
Em nenhum lugar o clima de expectativa ansiosa é mais agudo do que entre os aliados dos EUA na Europa. A aliança transatlântica do pós-guerra foi rompida. A substituição da ameaça soviética pelo terrorismo islâmico significa que a Europa deixou de ser o centro do interesse geopolítico dos EUA -e os EUA deixaram de ser os avalistas fundamentais da segurança européia. Sem a dependência mútua resultante da Guerra Fria, a aliança só vai conseguir funcionar, de agora em diante, se ambos os lados estiverem dispostos a trabalhar para isso. O Iraque parece indicar que não estão.
Em sua campanha, Bush vem se atendo aos temas principais de seu primeiro mandato: a política externa, o uso declarado do poderio militar americano, a difusão de "liberdade e democracia" e o desprezo constante pela França e por tudo o que é francês. Na visão de Bush, a promoção dos interesses americanos, por definição benignos, se legitima por si só.
Os otimistas na Europa dizem que Bush deve mudar se conseguir um segundo mandato. A força das circunstâncias já o obrigou a pedir a ajuda da ONU. Os EUA estão atolados no Iraque. Apesar do discurso beligerante de assessores do presidente, faltam soldados e disposição à América para outra guerra. De qualquer maneira, o presidente é mais multilateralista do que deixa transparecer. Os verdadeiros vilões são Richard Cheney e Donald Rumsfeld.
Os realistas respondem que Bush, se for reeleito, enxergará sua reeleição como confirmação do acerto de sua política externa. Ao final do terceiro e último debate, Bush chegou o mais perto possível de dizer que Deus está de seu lado. Acrescente-se a isso a ratificação do eleitorado americano -e por que ele deveria mudar?
Kerry, é claro, também defende o direito dos EUA de agir por conta própria quando o faz em autodefesa. Lendo seus discursos de campanha, os europeus poderiam ser perdoados por imaginar que a mudança que ele propõe seria de estilo, tanto quanto de conteúdo. O mais conhecido porta-voz do candidato democrata para a área da política externa, Richard Holbrooke, que também é nome possível para futuramente tornar-se secretário de Estado, é conhecido na Europa desde os tempos em que foi assessor de Bill Clinton. Controlado e crítico, Holbrooke não é por natureza conciliador.
Os céticos também se perguntam o que Kerry estaria disposto a conceder, em troca do apoio que ele espera para conseguir arrancar os EUA do atoleiro iraquiano. Outro dia ouvi um diplomata europeu de alto escalão comentar que uma voz à mesa é uma coisa, mas o importante é se Washington dará ou não ouvidos a ela.


Tradução de Clara Allain


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