São Paulo, segunda-feira, 19 de novembro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª

GENERAL RAÚL ISAÍAS BADUEL

Reforma de Hugo Chávez é "fraude constituinte"

Ex-aliado do presidente venezuelano diz que "socialismo do século 21 é clichê", mas advoga entrada da Venezuela no Mercosul

FABIANO MAISONNAVE
DE CARACAS

É quase diário o surgimento de acusações de golpe de Estado na Venezuela. Mas nenhuma provocou tanta repercussão nos últimos anos como a desferida pelo ex-ministro da Defesa Raúl Isaías Baduel contra o presidente Hugo Chávez, no meio de uma tensa campanha em torno do referendo sobre a reforma constitucional, em menos de duas semanas.
Integrante do gabinete presidencial até julho, o general aposentado Baduel, 52, se transformou, no início do mês, num dos principais opositores do projeto de reforma constitucional de Chávez, que prevê a reeleição indefinida apenas para presidente, aumenta as atribuições do Executivo e traz benefícios sociais, como a redução da jornada de trabalho.
Chamado de "traidor" por Chávez apesar dos mais de 25 anos de aliança, o protagonista do "Baduelazo" também é duro nas críticas. Sempre em tom calmo e com uma narrativa meticulosa, ele explicou à Folha na quinta-feira, em Caracas, por que considera a reforma um "golpe" e contou que perdeu a escolta pessoal em represália às suas declarações.

 

FOLHA - Por que o projeto de reforma constitucional é um golpe de Estado?
RAÚL ISAÍAS BADUEL
- Sempre procurei ser muito prudente, muito comedido e não emitir opiniões ligeiras. Mas agora podemos qualificar com propriedade que essa mal chamada reforma é atentatória contra todos os princípios da Constituição. Fizemos essas considerações após a materialização da proposta de reforma, que modifica 20% do texto constitucional. Os Poderes Executivo e Legislativo confiscam, expropriam o Poder Constituinte originário, que está no povo, uma atribuição indelegável.
Além disso, essa proposta fere o que está estabelecido no artigo 342 da Constituição, quando se assinala que a reforma constitucional tem por objetivo uma revisão parcial e a substituição de uma ou várias de duas normas, e aqui vem o ponto central: [lê o artigo] "que não modifiquem a estrutura e os princípios fundamentais do texto constitucional".
Concluímos que se trata de uma fraude constituinte em curso e um golpe de Estado. Faço um paralelo com o ocorrido em abril de 2002, quando uma junta de fato usurpou o poder constituído na Venezuela, abrindo mão da Constituinte vigente em 1999. E agora também se abre mão do texto constitucional com a suposta intenção de melhorá-lo.
Comete-se uma fraude constituinte porque não é uma revisão de algumas normas, e sim uma transformação do Estado. É um rumo diferentíssimo que tomará o Estado caso essa proposta se materialize. E isso não se pode fazer a não ser por intermédio de uma Assembléia Nacional Constituinte.

FOLHA - O sr. tem chamado a população a votar, mas, caso Chávez vença o referendo, quais seriam as ações legítimas contra o que o sr. considera um golpe de Estado?
BADUEL
- Em princípio, qualquer que seja o resultado de 2 de dezembro, abre-se uma nova dinâmica política a todos os setores da sociedade venezuelana. Uma das tentativas de desqualificação é a de que me converti num porta-voz da oposição, mas a única arma democrática e cívica é dizer "não".
Quais são as opções? [Uma delas é] A abstenção, que certamente apenas favorece que essa fraude constituinte em curso seja aprovada. Segundo o artigo 345 da Constituição, se uma pessoa votar e for pelo "sim", a reforma passa.
Qual é a outra opção? São as ações de ruas, também reconhecidas no marco democrático. Mas já vimos aonde conduzem as ações de rua. Eu, como soldado formado profissionalmente na administração da violência legal e legítima do Estado, tenho inquietudes de que isso possa ser o início de um processo de violência generalizada, de confrontação e de instabilidade que em nada favorece nosso país.
A opção mais perniciosa é a indiferença. A única válida, portanto, é o exercício da cidadania por meio do voto.

FOLHA - O Congresso brasileiro debate neste momento a entrada da Venezuela no Mercosul. O que o sr. diria aos parlamentares com respeito à questão da democracia?
BADUEL
- Devo assinalar, como cidadão, que sou favorável à integração. Portanto, aspiraria que não houvesse dúvidas sobre o exercício da democracia em nosso país e que isso não fosse um obstáculo para o ingresso no Mercosul.
Deveríamos ter em conta que o ingresso do nosso país como membro pleno do Mercosul não pode ser feito sem consultas e de forma atropelada. Deve ser um assunto bem conduzido, onde se resolvam os assuntos relativos à assimetria entre as economias dos nossos países.
É um fato que Uruguai e Paraguai estão em condições mais assimétricas. Poderíamos precisar que a Venezuela estaria em condições de assimetria não só com Brasil e Argentina mas também com o Uruguai e o Paraguai em aspectos da pecuária e agrícolas. Agora, acrescenta-se a essa circunstância o fato de que existem dúvidas no Congresso do seu país sobre o exercício da democracia.
Eu posso assinalar-lhe algo: em minhas palavras de 18 de julho, quando entreguei o Ministério da Defesa, fiz reflexões e alguns alertas, com muito comedimento, sobre o modelo teórico-político que se instaurava em nosso país diante dessa convocatória de construir o chamado socialismo do século 21, que até agora é um clichê, sem definição exata. Assinalei que o modelo teórico-político, em minha concepção, deveria ser profundamente democrático, privilegiando a participação e o protagonismo como está no texto constitucional vigente. E que deveríamos nos blindar da ortodoxia marxista, que assinala que a democracia não é mais do que um instrumento de dominação burguesa.

FOLHA - O sr. disse que o reitores (juízes) do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) são favoráveis ao governo, assim como no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Existem, a seu ver, instituições na Venezuela para combater a corrupção ou cuidar de uma campanha eleitoral?
BADUEL
- Com relação ao CNE, eu também afirmo que os próprios setores da oposição, que concorreram em eleições, validaram as auditorias feitas no sistema. A sua pergunta é muito apropriada porque, em muitos casos, essas dúvidas tomam corpo no seio da sociedade precisamente para promover a abstenção. Eles [chavistas] sabem que a abstenção não tem força como uma arma de demonstração de vontade política. No mais recente evento eleitoral, as eleições presidenciais, foi feita uma auditoria em 58% do sistema, e essa auditoria não encontrou um só elemento para colocar em dúvida a transparência do sistema eleitoral.
Buscou-se, portanto, potencializar essa idéia de que não há confiança no sistema. Podemos dizer que até no seio dos organismos públicos ou com as pessoas que têm alguma conexão de serviço com o setor público faz-se correr a idéia de que sua intenção de voto não estará protegida pela confidencialidade. Então as pessoas dizem:
"Não estou de acordo, mas não vou me expor ao risco de votar "não" porque podem descobrir e isso poderia me trazer conseqüências no trabalho".

FOLHA - Chávez já declarou que poderia intervir militarmente na Bolívia e em Cuba. É uma proposição que vem sendo acompanhada de preparativos nas Forças Armadas?
BADUEL
- Creio que uma ampla maioria da sociedade concorda que deveríamos ter cuidado, sobretudo nas relações exteriores, com a incontinência verbal. Isso não quer dizer passividade, que não possamos mostrar nossa posição firmemente.
Mas que não caiamos em incontinência verbal. Porque dizer que nosso país pode intervir militarmente em outro país da região contraria o artigo 13, que diz o seguinte: [volta a ler a Constituição] "O espaço geográfico venezuelano é uma zona de paz".

FOLHA - Essas declarações de Chávez vêm acompanhadas da compra de muitas armas, algumas quando o sr. era ministro. Qual é a estratégia militar que orienta essas aquisições?
BADUEL
- Essas aquisições não geram um desequilíbrio quanto à dotação de armamento dos países da área. As aquisições que fazemos são dirigidas basicamente à defesa integral de nosso país. Já caiu em desuso aquela velha tese de conflito com os países da região. Estamos comprometidos com a vocação pacifista. Há países da região que, por meio de planos de ajuda militar, receberam dotações de armamento de igual ou maior magnitude do que nós.

FOLHA - As aquisições são, portanto, para substituir as que sofreram bloqueio dos EUA?
BADUEL
- Sim. O armamento de dotação individual das Forças Armadas tinha 50 anos ou mais. E a aquisição do sistema de aeronaves foi motivada pela reposição das aeronaves provenientes dos EUA quando começamos a ver que se atrasava, se negava ou não se concretizava a possibilidade de fazer uma manutenção adequada de nossos sistemas. Então, nosso país substituiu esses sistemas por aeronaves de fabricação russa.

FOLHA - É correta a informação de que o sr. perdeu sua escolta após as declarações contra a reforma?
BADUEL
- Sim, no dia 5, quase imediatamente depois que dei as declarações, os companheiros e companheiras de armas que formavam a minha escolta e a da minha família foram chamados a se apresentar em seu subcomando. Ninguém é responsável pelas minhas opiniões. Eram meninos e meninas que se dedicavam a essa tarefa de segurança. Pedi que isso não se materializasse em retaliações contra eles.

FOLHA - Várias de suas críticas já têm sido feitas há algum tempo pela oposição. Quem mudou, o sr. ou o presidente Chávez?
BADUEL
- Eu remeto aos fatos. Muitos companheiros que participaram do movimento de 4 de fevereiro de 1992 [tentativa de golpe contra o então presidente Carlos Andrés Pérez] também marcaram distância.
Muito da aspiração do país, do sonho do que deveria ser a prática profunda da democracia na nossa nação, está condensado neste texto constitucional vigente desde 1999. Se vemos agora um empenho em lhe fazer uma mudança diametralmente oposta, haveria que perguntar quem está mudando de rumo.


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