São Paulo, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

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CRISE

Linha dura fecha escritório do maior partido reformista e dois jornais independentes; eleitor segue apático para a votação de hoje

Irã reprime liberais na véspera da eleição

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A linha dura do Irã intensificou ontem, véspera da eleição que renovará o Majlis (Parlamento), sua ofensiva contra o movimento reformista, ordenando o fechamento de um escritório de campanha do maior partido liberal do país, a Frente de Participação do Irã Islâmico (FPII), e o bloqueio de seu recém-criado site na internet.
A atual crise política iraniana teve início em janeiro, quando o Conselho de Guardiães, órgão que zela pelo respeito à Constituição no Irã, cujos 12 membros (clérigos e juristas) foram apontados pelo aiatolá Ali Khamenei, o líder supremo do país, bloqueou a candidatura de milhares de reformistas ao pleito legislativo de hoje.
Depois de uma intervenção de Khamenei, o conselho decidiu voltar atrás em centenas de casos, mas ainda negou o pedido de candidatura de cerca de 2.500 liberais. Desde o anúncio dessa decisão final do órgão, 1.179 reformistas abandonaram a disputa.
As medidas contra a FPII, que é liderada por Mohammad Reza Khatami -irmão do presidente do Irã, o reformista moderado Mohammad Khatami-, foram tomadas um dia depois do fechamento de dois jornais independentes, o "Yas-e No" e o "Sharq", e de um site independente, o Rouydad. Eles foram punidos porque publicaram uma carta dos liberais, enviada a Khamenei, com duras críticas ao regime.
Para Olivier Roy, diretor do Laboratório Mundo Iraniano do Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, os "conservadores pragmáticos" deram início à recente ofensiva contra os reformistas porque querem "recuperar a maioria no Parlamento a qualquer custo". Em 2000, o bloco liberal conquistou cerca de 70% dos postos no Majlis.
"Há duas categorias de conservadores: os dogmáticos, como o líder supremo, que não suportam a oposição por princípio, e os pragmáticos, como o ex-presidente Hashemi Rafsanjani, que crêem que a reforma do regime seja necessária, mas querem introduzi-la à sua maneira. Para tanto, os pragmáticos precisam de uma maioria confortável no Parlamento", analisou Roy.
O Irã vive, na prática, uma crise institucional desde que Khatami foi eleito presidente, em 1997. Afinal, segundo a iraniana Shireen Hunter, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, dos EUA, "a linha dura bloqueia as iniciativas do presidente desde então e as do Parlamento liderado pelos reformistas desde 2000".
A crise pôs Khatami numa situação delicada. Afinal, boa parte de sua base de apoio popular, constituída sobretudo por jovens (por volta de 60% da população do Irã tem menos de 30 anos), não mais crê que ele tenha coragem de enfrentar os conservadores.
"O presidente perdeu credibilidade aos olhos da população. Muita gente já diz que tudo o que ele quer é permanecer no poder. Ele não tem muita margem de manobra. Contudo poderia impedir a realização da eleição, o que geraria uma crise constitucional, que é algo mais grave. Mas preferiu apenas criticar a linha dura e autorizar seu partido a participar do pleito", apontou Roy.
De fato, Khatami se limitou a dizer que "o despotismo e a imposição de idéias" levariam à "corrupção". "A liberdade e um ambiente de livre escolha podem até causar alguns males, mas cultivam a virtude", acrescentou o presidente.
Ora, para os milhões de iranianos que comemoraram nas ruas suas duas vitórias -em 1997 e em 2001- e a conquista da maioria no Majlis pelos reformistas -em 2000-, a retórica conciliadora de Khatami não é mais suficiente, pois faltam mudanças concretas.

Apatia popular
Apesar da grave crise política, a maioria da população parece permanecer indiferente. Levantamentos informais indicam que o comparecimento às urnas deverá ser muito baixo hoje. Há quatro anos, 67% do eleitorado, composto por cerca de 46 milhões de iranianos de 15 anos de idade ou mais, votou. Mas as eleições municipais de 2003 só foram prestigiadas por 15% dos eleitores.
Em tese, os liberais poderiam exortar a população a sublevar-se contra o regime. No entanto, como salientou Roy, "os reformistas não são revolucionários". E, se os "conservadores pragmáticos" inserirem certas reformas liberalizantes na pauta do Legislativo, o eleitorado poderá aceitar uma mudança gradual do regime.
Os analistas ouvidos pela Folha divergem quanto ao desfecho da crise atual. Segundo Saeid Zahed, da Universidade de Shiraz, do Irã, "ela acabará junto com o fechamento das urnas hoje". "O respeito às leis e às regras da democracia são a solução para a crise."
Para Hunter, o regime islâmico vem ruindo desde a morte do aiatolá Khomeini (1989). "A crise só vai acelerar sua queda."


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