São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Voto acirra ânimos sectários no Iraque

DILIP HIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma manchete apropriada, que resumiria bem o resultado das eleições para a Assembléia Nacional iraquiana, em 30 de janeiro, seria: ""Sem surpresas".
Em vista do alto índice de comparecimento de eleitores nas regiões de maioria xiita e do índice maior ainda na região curda, era amplamente previsto que as alianças dominadas por xiitas e curdos saíssem vitoriosas da eleição. Elas saíram. E, também conforme o esperado, em vista do amplo boicote sunita da eleição, a única chapa de maioria sunita que conseguiu algumas vagas na Assembléia obteve apenas cinco -ou seja, 1/11 das cadeiras que os sunitas deveriam ter conseguido.
De modo geral, a eleição expôs e acirrou as divisões sectárias e étnicas na sociedade iraquiana. Ao mesmo tempo, fortalecido por um mandato popular, o novo governo parece estar seguindo uma rota de colisão com os ocupantes americanos, em torno da presença de tropas estrangeiras no Iraque.
Cada uma das três maiores comunidades começou a defender um cenário diferente na era pós-Saddam. Privados do poder que detiveram por muito tempo e ainda não acostumados com essa situação de impotência, os líderes sunitas ainda estão desorganizados, concentrando sua atenção unicamente em expulsar os americanos de seu país.
Para a minoria curda, étnica e lingüisticamente distinta dos árabes, o Iraque pós-Saddam Hussein encerra a promessa de um Estado soberano do Curdistão, tendo como sua capital a cidade de Kirkuk, rica em petróleo.
Movidos pelo nacionalismo étnico, os curdos superaram os xiitas em seu entusiasmo por votar. Os mais de 90% de eleitores que compareceram às urnas nas três Províncias de maioria curda e nas províncias etnicamente mistas de Níneve (capital: Mossul) e Tamim (capital: Kirkuk) fortaleceram o poder de barganha das lideranças curdas.
A Aliança do Curdistão ganhou 25 cadeiras adicionais, às expensas dos sunitas. Esse fato está intensificando as tensões entre as duas comunidades, especialmente em Kirkuk e em Mossul, a segunda maior cidade do Iraque.
Para a maioria xiita, há anos relegada ao segundo plano, a queda do regime de Saddam abriu a perspectiva de, pela primeira vez, o Iraque ter um governo de maioria xiita, eleito pelo voto popular. Não surpreende que o grão-aiatolá Ali al Sistani tenha declarado que votar era um dever religioso dos fiéis.
Aceitando a fatwa (decreto religioso) de Sistani sem questioná-la, os xiitas acorreram aos locais de voto em massa, em 30 de janeiro. E, pelo fato de terem votado na Aliança Iraquiana Unida (AIU), inspirada por Sistani, eles subscreveram o manifesto de 22 pontos da AIU, na qual a exigência de ""um cronograma para a retirada das forças multinacionais do Iraque" está quase em primeiro lugar.
Por acaso, essa reivindicação xiita também encontra eco entre os sunitas, incluindo os insurgentes. Cabe aos líderes da comunidade xiita, mais bem organizada, encontrar maneiras de acabar com o alheamento que a maioria dos sunitas está sentindo.

Negociações imediatas
Depois que a Assembléia Nacional tiver eleito um Conselho da Presidência, a ser formado pelo presidente e dois vices, ela vai eleger um primeiro-ministro executivo e seu gabinete.
O governo de maioria xiita terá de exigir negociações imediatas com a administração Bush sobre uma fórmula para a retirada das tropas americanas e de outras nacionalidades do Iraque.
Mas ele não chegará muito longe. ""Não vamos fixar um cronograma artificial para deixarmos o Iraque, porque isso tornaria os terroristas mais ousados e os levaria a pensar que podem nos derrotar pelo cansaço", disse o presidente George W. Bush em seu Discurso sobre o Estado da União, em 2 de fevereiro.
""Estamos no Iraque para alcançar um resultado: um país que seja democrático, representativo de todo seu povo, em paz com seus vizinhos e capaz de defender-se." Não é difícil imaginar quanto tempo seria preciso para realizar esse conjunto de objetivos de Bush, que peca por ser excessivamente ambicioso.
Portanto, existem fortes perspectivas de crise em Bagdá pouco após a posse de um futuro governo eleito.
Além de administrar o Iraque, o novo governo vai supervisionar a redação da Constituição permanente, pela Assembléia Nacional. Os encarregados dessa tarefa vão enfrentar dois problemas principais: a relação entre o Estado e a mesquita, a autonomia limitada dos curdos e as fronteiras da região dentro da qual essa autonomia será exercida.

O papel do islã
Um ano atrás, quando a Constituição interina estava sendo redigida pelo Conselho de Governo do Iraque (CGI), sob a supervisão de Paul Bremer, administrador-chefe da Autoridade Provisória da Coalizão (APC), a questão do islã e do Estado já se mostrava complicada.
Quando o presidente do CGI, Muhsin Abdul Hamid, propôs que a sharia fosse ""a base primeira" das leis na Constituição interina, Bremer ameaçou vetá-la. A sharia é um compêndio do Alcorão e do Hadith, os dizeres e os atos do profeta Muhammad.
No final, os integrantes do CGI chegaram a um meio-termo, descrevendo a sharia como ""fonte principal" da legislação iraquiana.
Depois da eleição recente, os líderes religiosos xiitas formularam uma exigência. Em 6 de fevereiro, um porta-voz do grão-aiatolá Muhammad Ishaq al Fayad disse: ""Todos os ulemás [o clero] e os marja [os líderes religiosos], além da maioria da população iraquiana, querem que a Assembléia Nacional faça do islã a fonte [única] de legislação na Constituição permanente e rejeite qualquer lei contrária ao islã". Sistani apoiou a declaração.
Uma semana depois, Hussein Shahristani, líder da AIU, que conquistou 51% das cadeiras na Assembléia Nacional, reiterou a exigência.
Embora os xiitas, em sua maioria avassaladora, sejam a favor de que a sharia seja especificada como fonte única de legislação, os líderes curdos não encaram a sugestão com o mesmo entusiasmo. E os americanos são decididamente contrários a ela. Mas a presença de tal dispositivo na Constituição poderia representar uma maneira eficaz de aplacar os militantes sunitas que querem que ""a bandeira do islã tremule no Iraque".

Curdistão
O segundo problema de solução complicada diz respeito à exigência curda de que as fronteiras atuais da Região Autônoma do Curdistão (RAC), que consiste de três Províncias -formadas durante o governo baathista, em 1974-, sejam ampliadas de modo a incluir a província de Tamim, rica em petróleo. O fato de a Aliança do Curdistão ter obtido 48% dos votos (devido ao boicote das urnas pela maioria dos árabes sunitas e por muitos turcomanos sunitas) na eleição para o Conselho Provincial, realizada simultaneamente, encorajou os dirigentes curdos.
Qualquer ampliação da RAC encontrará oposição acirrada não apenas por parte dos árabes e turcomanos locais, mas também da vizinha Turquia. O país teme que a receita petrolífera de Tamim torne a RAC economicamente forte e abra o caminho para a declaração de um Estado independente do Curdistão. Isso, por sua vez, inspiraria os curdos turcos, no sudeste da Turquia, a reavivar sua luta armada pela independência.
Entretanto, animados com sua vitória eleitoral, os líderes curdos iraquianos provavelmente vão ignorar as preocupações da Turquia e os temores de seus vizinhos de etnia árabe e turcomana.


O indiano Dilip Hiro é autor de ""Iraq: In the Eye of the Storm" (Iraque: no olho da tempestade) e ""Secrets and Lies: Operation "Iraqi Freedom" and After" (segredos e mentiras: Operação "Liberdade Iraquiana" e depois).

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Oriente Médio: Hizbollah pede o fim da agitação contra a Síria
Próximo Texto: Oriente Médio: Brasileiro foca o exótico ao relatar a segunda Intifada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.