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ARTIGO
Voto acirra ânimos sectários no Iraque
DILIP HIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma manchete apropriada, que
resumiria bem o resultado das
eleições para a Assembléia Nacional iraquiana, em 30 de janeiro,
seria: ""Sem surpresas".
Em vista do alto índice de comparecimento de eleitores nas regiões de maioria xiita e do índice
maior ainda na região curda, era
amplamente previsto que as
alianças dominadas por xiitas e
curdos saíssem vitoriosas da eleição. Elas saíram. E, também conforme o esperado, em vista do
amplo boicote sunita da eleição, a
única chapa de maioria sunita que
conseguiu algumas vagas na Assembléia obteve apenas cinco
-ou seja, 1/11 das cadeiras que os
sunitas deveriam ter conseguido.
De modo geral, a eleição expôs e
acirrou as divisões sectárias e étnicas na sociedade iraquiana. Ao
mesmo tempo, fortalecido por
um mandato popular, o novo governo parece estar seguindo uma
rota de colisão com os ocupantes
americanos, em torno da presença de tropas estrangeiras no Iraque.
Cada uma das três maiores comunidades começou a defender
um cenário diferente na era pós-Saddam. Privados do poder que
detiveram por muito tempo e ainda não acostumados com essa situação de impotência, os líderes
sunitas ainda estão desorganizados, concentrando sua atenção
unicamente em expulsar os americanos de seu país.
Para a minoria curda, étnica e
lingüisticamente distinta dos árabes, o Iraque pós-Saddam Hussein encerra a promessa de um
Estado soberano do Curdistão,
tendo como sua capital a cidade
de Kirkuk, rica em petróleo.
Movidos pelo nacionalismo étnico, os curdos superaram os xiitas em seu entusiasmo por votar.
Os mais de 90% de eleitores que
compareceram às urnas nas três
Províncias de maioria curda e nas
províncias etnicamente mistas de
Níneve (capital: Mossul) e Tamim
(capital: Kirkuk) fortaleceram o
poder de barganha das lideranças
curdas.
A Aliança do Curdistão ganhou
25 cadeiras adicionais, às expensas dos sunitas. Esse fato está intensificando as tensões entre as
duas comunidades, especialmente em Kirkuk e em Mossul, a segunda maior cidade do Iraque.
Para a maioria xiita, há anos relegada ao segundo plano, a queda
do regime de Saddam abriu a
perspectiva de, pela primeira vez,
o Iraque ter um governo de maioria xiita, eleito pelo voto popular.
Não surpreende que o grão-aiatolá Ali al Sistani tenha declarado
que votar era um dever religioso
dos fiéis.
Aceitando a fatwa (decreto religioso) de Sistani sem questioná-la, os xiitas acorreram aos locais
de voto em massa, em 30 de janeiro. E, pelo fato de terem votado na
Aliança Iraquiana Unida (AIU),
inspirada por Sistani, eles subscreveram o manifesto de 22 pontos da AIU, na qual a exigência de
""um cronograma para a retirada
das forças multinacionais do Iraque" está quase em primeiro lugar.
Por acaso, essa reivindicação
xiita também encontra eco entre
os sunitas, incluindo os insurgentes. Cabe aos líderes da comunidade xiita, mais bem organizada,
encontrar maneiras de acabar
com o alheamento que a maioria
dos sunitas está sentindo.
Negociações imediatas
Depois que a Assembléia Nacional tiver eleito um Conselho da
Presidência, a ser formado pelo
presidente e dois vices, ela vai eleger um primeiro-ministro executivo e seu gabinete.
O governo de maioria xiita terá
de exigir negociações imediatas
com a administração Bush sobre
uma fórmula para a retirada das
tropas americanas e de outras nacionalidades do Iraque.
Mas ele não chegará muito longe. ""Não vamos fixar um cronograma artificial para deixarmos o
Iraque, porque isso tornaria os
terroristas mais ousados e os levaria a pensar que podem nos derrotar pelo cansaço", disse o presidente George W. Bush em seu
Discurso sobre o Estado da
União, em 2 de fevereiro.
""Estamos no Iraque para alcançar um resultado: um país que seja democrático, representativo de
todo seu povo, em paz com seus
vizinhos e capaz de defender-se."
Não é difícil imaginar quanto
tempo seria preciso para realizar
esse conjunto de objetivos de
Bush, que peca por ser excessivamente ambicioso.
Portanto, existem fortes perspectivas de crise em Bagdá pouco
após a posse de um futuro governo eleito.
Além de administrar o Iraque, o
novo governo vai supervisionar a
redação da Constituição permanente, pela Assembléia Nacional.
Os encarregados dessa tarefa vão
enfrentar dois problemas principais: a relação entre o Estado e a
mesquita, a autonomia limitada
dos curdos e as fronteiras da região dentro da qual essa autonomia será exercida.
O papel do islã
Um ano atrás, quando a Constituição interina estava sendo redigida pelo Conselho de Governo
do Iraque (CGI), sob a supervisão
de Paul Bremer, administrador-chefe da Autoridade Provisória da
Coalizão (APC), a questão do islã
e do Estado já se mostrava complicada.
Quando o presidente do CGI,
Muhsin Abdul Hamid, propôs
que a sharia fosse ""a base primeira" das leis na Constituição interina, Bremer ameaçou vetá-la. A
sharia é um compêndio do Alcorão e do Hadith, os dizeres e os
atos do profeta Muhammad.
No final, os integrantes do CGI
chegaram a um meio-termo, descrevendo a sharia como ""fonte
principal" da legislação iraquiana.
Depois da eleição recente, os líderes religiosos xiitas formularam
uma exigência. Em 6 de fevereiro,
um porta-voz do grão-aiatolá
Muhammad Ishaq al Fayad disse:
""Todos os ulemás [o clero] e os
marja [os líderes religiosos], além
da maioria da população iraquiana, querem que a Assembléia Nacional faça do islã a fonte [única]
de legislação na Constituição permanente e rejeite qualquer lei
contrária ao islã". Sistani apoiou a
declaração.
Uma semana depois, Hussein
Shahristani, líder da AIU, que
conquistou 51% das cadeiras na
Assembléia Nacional, reiterou a
exigência.
Embora os xiitas, em sua maioria avassaladora, sejam a favor de
que a sharia seja especificada como fonte única de legislação, os líderes curdos não encaram a sugestão com o mesmo entusiasmo.
E os americanos são decididamente contrários a ela. Mas a presença de tal dispositivo na Constituição poderia representar uma
maneira eficaz de aplacar os militantes sunitas que querem que ""a
bandeira do islã tremule no Iraque".
Curdistão
O segundo problema de solução
complicada diz respeito à exigência curda de que as fronteiras
atuais da Região Autônoma do
Curdistão (RAC), que consiste de
três Províncias -formadas durante o governo baathista, em
1974-, sejam ampliadas de modo a incluir a província de Tamim, rica em petróleo. O fato de a
Aliança do Curdistão ter obtido
48% dos votos (devido ao boicote
das urnas pela maioria dos árabes
sunitas e por muitos turcomanos
sunitas) na eleição para o Conselho Provincial, realizada simultaneamente, encorajou os dirigentes curdos.
Qualquer ampliação da RAC
encontrará oposição acirrada não
apenas por parte dos árabes e turcomanos locais, mas também da
vizinha Turquia. O país teme que
a receita petrolífera de Tamim
torne a RAC economicamente
forte e abra o caminho para a declaração de um Estado independente do Curdistão. Isso, por sua
vez, inspiraria os curdos turcos,
no sudeste da Turquia, a reavivar
sua luta armada pela independência.
Entretanto, animados com sua
vitória eleitoral, os líderes curdos
iraquianos provavelmente vão ignorar as preocupações da Turquia e os temores de seus vizinhos
de etnia árabe e turcomana.
O indiano Dilip Hiro é autor de ""Iraq: In
the Eye of the Storm" (Iraque: no olho da
tempestade) e ""Secrets and Lies: Operation "Iraqi Freedom" and After" (segredos e mentiras: Operação "Liberdade Iraquiana" e depois).
Tradução de Clara Allain
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