São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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ORIENTE MÉDIO

Em livro de reportagens, Ariel Finguerman mostra o papel dos "sem-poder" na trajetória do levante palestino

Brasileiro foca o exótico ao relatar a segunda Intifada

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Muito papel já foi gasto para publicar as decisões de Estado e de lideranças carismáticas envolvidas no conflito israelo-palestino. A cada novo acordo de paz e a cada novo rompimento, as vozes amplificadas são as dos chefes, que fazem da mídia o tabuleiro de seu jogo político. Mas a história desse confronto é também a dos "sem-poder", personagens geralmente tratados pela imprensa como massa indistinta -genericamente "palestinos" e "israelenses"-, sem que tenhamos condições de conhecê-los nem de dimensionar sua força. O jornalista brasileiro Ariel Finguerman resolveu observá-los de perto, e o resultado, o livro "Retratos de uma Guerra", é revelador da assustadora complexidade desse combate.
"Retratos" envolve a cobertura dos mais de quatro anos da nova Intifada, supostamente encerrada agora com o aperto de mão entre o premiê de Israel, Ariel Sharon, e o presidente palestino, Mahmoud Abbas. No livro, Finguerman escolhe contar essa história por meio de personagens exóticos, como o rabino convertido ao islamismo, o jornalista israelense que só cobre o lado palestino e os soldados gays de Israel.
No final das contas, trata-se de uma opção um tanto pessimista. Finguerman parece entender que, em boa parte dos casos, somente aqueles que se permitem compreender o "outro lado" de forma radical, transformando-se no "inimigo", como faz, por exemplo, o rabino que é ministro da Autoridade Nacional Palestina, são capazes de fornecer esperança de solução para o conflito.
E não é à toa. "Hoje, os dois lados reconhecem que não é o momento de falar em paz, apenas em pequenas concessões", disse Finguerman à Folha, ao comentar a trégua entre Israel e palestinos. Em meio ao relato muitas vezes cândido e engraçado dos personagens, é possível divisar claramente o imenso muro cultural que separa os dois povos, cuja superação parece ser impossível. A construção do muro de concreto talvez tenha sido, afinal, a materialização dessa impossibilidade.
Não é por outra razão que Finguerman considera o muro israelense o principal símbolo da nova Intifada. "O muro não partiu da direita israelense. O muro partiu de um movimento popular israelense, da necessidade de separar as duas populações", diz ele.
Finguerman dá exemplos claros desse abismo. Ele mostra, por exemplo, como o martírio de jovens é louvado pelos palestinos. Após o primeiro atentado suicida contra israelenses cometido por uma mulher, Wafa Idris, 28, ela é elogiada por duas meninas, de dez e 11 anos, a caminho da casa da família enlutada. "É a primeira vez que uma garota faz isso. É bonito", diz uma delas. "Wafa está morta, mas estamos contentes pelo que ela fez", afirma a cunhada da suicida. Idris matou um israelense de 81 anos na explosão no centro de Jerusalém.
Mesmo alguns palestinos afirmam que o martírio é "cultural", coisa que a ocidentalizada sociedade israelense não consegue compreender. Além disso, disse Finguerman na entrevista, restam poucas armas para os palestinos enfrentarem os israelenses, e uma delas é o uso de terroristas suicidas. "Os suicidas eram a única maneira de dar o troco nos israelenses. Mas, a partir do 11 de Setembro, a Intifada foi vinculada ao terrorismo e começou a perder legitimidade."
Do lado israelense, Finguerman fala com um colono judeu na Cisjordânia que compara os territórios palestinos a um "quarto de empregada" e afirma: "Eles têm ciúmes de nós; não pode haver uma relação boa. O que será a Palestina? Dá para imaginar coisa boa saindo disso?". É de uma eloqüência auto-explicativa.
Essa clara indisposição israelense em relação aos palestinos, porém, não se limita mais aos colonos. A crescente popularidade de Ariel Sharon em Israel talvez seja o melhor termômetro disso. De pária político, Sharon tornou-se o que Finguerman chama de "uma espécie de pai" para boa parte dos israelenses. E poucos nomes causam tamanha repulsa entre os palestinos do que o de Sharon.
Finguerman, judeu, sentiu essa dificuldade de perto por ter o nome do premiê (Ariel) e de uma das maiores colônias judaicas na Cisjordânia. Mas os riscos do trabalho, conta ele, foram reduzidos consideravelmente pelo fato de ser brasileiro.
O Brasil é um fenômeno nos territórios palestinos e mesmo em Israel. Como relata Finguerman no livro, o futebol, principal produto cultural brasileiro no Oriente Médio, é um dos raros elementos capazes de agregar árabes e judeus. E a camisa da seleção brasileira é vista como uma espécie de passaporte tanto por soldados israelenses nos postos de fronteira como por militantes de grupos extremistas palestinos.
"Quando o Brasil joga, é como se os palestinos estivessem em campo", diz no livro um palestino presidente de um time de Ramallah. "Mesmo não havendo paz e não sendo amigos, quando nós e os israelenses assistimos ao Brasil jogar, não vemos política, mas sim futebol."


Retratos de uma Guerra
Autor: Ariel Finguerman
Editora: Globo
Quanto: R$ 30 (200 págs.)


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