São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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DOUTOR MORTE

Inquérito confirma que Shipman matou quase 1 pessoa por mês em 23 anos; ele cumpre prisão perpetua desde 2000

Médico britânico matou ao menos 215

DA REDAÇÃO

O médico Harold Shipman, o ""Dr. Morte" britânico, entrou para o ranking dos piores ""serial killers" do mundo ontem, quando um inquérito oficial concluiu que ele assassinou pelo menos 215 pacientes com injeções de opiáceos.
A investigação constatou que Shipman matou de maneira fria, sistemática e discreta ao longo de 23 anos, pondo fim à vida de um paciente após outro, numa quebra da relação de confiança médico-paciente ""que não tem paralelo na história", disse o inquérito.
Há dois anos e meio, o médico de família, hoje com 56 anos, começou a cumprir pena de prisão perpétua. Ele foi condenado pela morte de 15 mulheres, em sua maioria idosas, mas a extensão plena de seus crimes só está vindo à tona agora. Ele atingiu a média de quase um assassinato por mês ao longo de quase um quarto de século.
As razões que o levaram a assassinar seus pacientes continuam desconhecidas, e ele se recusa a confessar os crimes.

Plena confiança
"Por profundamente chocante que seja, a simples afirmação de que Shipman matou mais de 200 pacientes não reflete plenamente a enormidade de seus crimes", escreveu no relatório a juíza Janet Smith, que conduziu o inquérito. ""Como clínico geral, Shipman gozava da plena confiança de seus pacientes e das famílias deles. Ele traiu a confiança deles de uma maneira e a um ponto que acredito não ter paralelos na história."
Em entrevista coletiva à imprensa, a juíza disse ter ""causas reais" para suspeitar que o médico tenha matado outros 45 pacientes no norte da Inglaterra, em sua maioria perto de Manchester, e considerou ""profundamente perturbador" que ele tenha passado tantos anos agindo sem ser descoberto.
Para a promotoria, o desejo de matar de Shipman, descrito como sendo atencioso, porém arrogante, era alimentado pela vontade de exercer poder divino sobre a vida e a morte. Outros especularam que ele possa ter sido influenciado pelo fato de ter assistido à morte de sua mãe, por câncer, quando era adolescente.
Seja qual for o motivo, foi o fato de o médico ter usado os instrumentos de sua profissão -a medicina e a confiança que os pacientes depositavam nele- para matar que mais chocou a pequena comunidade de Hyde, na Grande Manchester.
A descoberta de muitas outras vítimas confirma Shipman como um dos mais prolíficos assassinos em série da história recente, comparável ao colombiano Pedro Lopez -conhecido como ""o monstro dos Andes"-, que, em 1980, foi condenado por 57 mortes, mas é suspeito de ter assassinado 300 meninas.
Shipman cometeu seus crimes entre 1975 e 1998. De suas vítimas, 171 foram mulheres e 44, homens. A mais velha foi uma mulher de 93 anos. A mais jovem, um homem de 41.
A juíza Smith excluiu a busca de lucro financeiro ou a perversão sexual como possíveis motivações do médico, dizendo que ele era altamente dominador, mas que sua verdadeira psique ainda é um enigma.
As famílias se perguntam como ele pôde matar tantas pessoas e por tanto tempo sem atrair suspeitas, fato que a Associação Médica Britânica atribuiu a uma "trágica falha no sistema". "Podemos garantir ao público que algo dessa magnitude não voltará a acontecer", disse Ian Bogle, presidente do sindicato dos médicos britânicos. Ele afirmou que já foram adotadas novas medidas de verificação.
Os crimes de Shipman normalmente começavam quando ele ia examinar um paciente idoso na residência deste. ""Durante a consulta, ele matava o paciente. Após a morte, ele agia de maneiras diferentes e oferecia diversas explicações distintas para o ocorrido", contou a juíza. ""A maneira como Shipman era capaz de matar alguém, enfrentar os familiares do morto e sair sem despertar suspeitas seria vista como fantástica e improvável se fosse descrita numa obra de ficção."
Foi o assassinato de uma ex-prefeita de Hyde que acabou por levar Shipman à prisão, quando a filha da paciente contestou um testamento novo no qual sua mãe teria deixado todos os seus bens para o médico. O corpo de Kathleen Grundy, de 81 anos, foi exumado, e foram encontrados traços da droga fatal.
O padre católico Denis Maher, da igreja St. Paul's, em Hyde, implorou diretamente a Shipman para que confessasse seus crimes. "Dr. Shipman, por favor, admita o que o senhor fez. Não apenas pelo bem da população da Hyde, mas também pelo senhor mesmo", disse o sacerdote.
Após a divulgação dos resultados do inquérito, Peter Wagstaff, cuja mãe foi morta por Shipman, disse em entrevista coletiva à imprensa: ""É a eterna pergunta -por que ele fez o que fez? É muito duro para nós".
Jane Ashton-Hibbert, cuja avó estava entre as vítimas de Shipman, falou: ""Ele ainda está com o poder porque não está falando nada. Enfrentar esse silêncio é muito duro para as famílias".
Pai de quatro filhos, Shipman em nenhum momento admitiu que cometeu os crimes, e sua mulher, Primrose, se manteve a seu lado o tempo todo.
Uma cópia do longo relatório da juíza será enviada a ele, na penitenciária de Frankland, no condado de Durham, norte da Inglaterra. Mas a polícia afirmou ontem que Shipman não vai enfrentar novos julgamentos devido à virtual impossibilidade de encontrar jurados ingleses que não tenham conhecimento de seus antecedentes.


Com agências internacionais


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