São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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Retrato psicológico revela depressão

IAN HERBERT
DO "THE INDEPENDENT"

A contagem de mortos divulgada ontem pelo relatório do inquérito sobre os crimes de Harold Shipman foi acompanhada por um retrato psicológico de um indivíduo profundamente infeliz e cronicamente deprimido, impelido a manifestar um grau espantoso de frieza e indiferença.
O relatório da juíza Janet Smith não conseguiu oferecer uma explicação conclusiva para seus crimes, reconhecendo que é pouco provável que Shipman algum dia coopere para sua própria análise psiquiátrica. Mas, com a ajuda de quatro especialistas do Instituto de Psiquiatria e baseada em relatos do comportamento do médico e do padrão que seguia em seus crimes, ela traçou um retrato psicológico do assassino.
O primeiro assassinato é uma parte crucial desse retrato. Na primavera de 1975, Shipman, que começara a trabalhar como clínico geral um ano antes, bateu à porta de Eva Lyons à noite. Ela era doente em fase terminal, e Shipman disse ao marido dela, Richard, que tinha alguma coisa que a ""ajudaria a seguir seu caminho". Às 23h20, ela estava morta.
Essa morte está longe de ser a mais repulsiva das 215 atribuídas a Shipman pela juíza. Ela reconheceu que algumas pessoas podem considerar que se tratou, na prática, de eutanásia. Mas também deixou clara a convicção de Shipman de que ele sabia quando a vida de um paciente deveria terminar. Mais tarde, após a morte de um paciente, ele frequentemente dizia que ""era melhor assim". Em suas próprias palavras, ditas a testemunhas, seria melhor morrer do que ""viver como legume" ou no hospital, ""com fios saindo de você".
Se os psiquiatras tivessem conseguido convencer Shipman a sentar-se diante deles -ele se recusou a cooperar com a equipe responsável pelo inquérito-, teriam lhe perguntado o que o levou a estudar medicina. Ele pode ter escolhido a profissão após a morte de sua mãe, quando ele tinha 17 anos, fator que já foi citado anteriormente como possível explicação para seus crimes. O fato de ter se tornado clínico geral numa cidade pequena, em lugar de integrante da elite médica, também pode ter sido motivo de frustração para ele, sugere o relatório.
Uma coisa é certa: os crimes não tiveram motivação financeira ou sexual. Mas há pistas que indicam algo sobre sua psicologia, na medida em que seu isolamento social era quase total. Seus colegas o consideravam distante e diziam que ele agia com arrogância. Sua vida comunitária ativa -ele era membro do conselho de direção de uma escola, torcedor do time de rúgbi local e secretário do comitê local de medicina- deveria ter lhe valido um largo círculo de amizades, mas Shipman não tinha amigos.
O relatório também menciona seu alto nível de agressividade e sentimento de superioridade, manifestados na maneira como humilhou um jovem representante de vendas de medicamentos e seu comportamento numa palestra sobre medicina. Segundo uma testemunha, nesta última Shipman ""a todo momento interrompia o palestrante convidado para discordar do que ele dizia, num tom extremamente pomposo. Seu comportamento virou motivo de constrangimento para todos que o conheciam".
Os psiquiatras disseram no inquérito que a arrogância e o excesso de confiança de Shipman eram, ""quase certamente, um disfarce para mascarar sua baixa auto-estima". Dependente de opiáceos durante a primeira fase de sua carreira médica, Shipman provavelmente passou a maior parte de sua vida adulta revoltado, profundamente infeliz e sofrendo de depressão crônica, eles concluíram.
A dependência de uma droga indica que ele tinha vários problemas subjacentes. A juíza Janet Smith comentou: ""Me parece quase certo que o problema que o levou a tornar-se dependente nos anos 1970 não foi resolvido e provavelmente tornou-se parte permanente de sua psique".
Embora suas características pessoais aparentes não bastem para explicar suas ações, os psiquiatras sugerem a possibilidade de que Shipman tenha ""desenvolvido o medo da morte e a necessidade de controlá-la". Ele pode ter sentido um interesse mórbido pela morte, experimentado prazer com ela e sentido que a morte aliviava ""a pressão ou a ansiedade intoleráveis que sentia".
Suas primeiras vítimas foram doentes terminais, como Eva Lyons, que representavam perigo mínimo de detecção e provavelmente lhe pareciam ser as mortes carregadas da menor culpa moral. Ele as matava porque não seriam ameaça a sua própria segurança e porque suas mortes poderiam ser justificadas.
A intensificação paulatina das mortes após 1994 demonstra uma ""dependência" do ato de matar, sugere o relatório. Após os assassinatos, enquanto os parentes se reuniam em volta das vítimas, Shipman sentia prazer em agir como ser onisciente, um ""mestre de cerimônias" controlador, concluiu o relatório. "Ele passava instruções sobre a retirada do cadáver e oferecia sua explicação da morte, acrescentando observações ao estilo de "ela estava comida pelo câncer'", diz o relatório.
As vítimas escolhidas oferecem mais um vislumbre do pensamento do assassino. Além dos doentes terminais, ele se mostrava especialmente disposto a matar pessoas que tinham perdido entes queridos. Além disso, parece ter matado pacientes que pediam muito de seu tempo ou recursos, considerados irritantes.
O relatório indica que Shipman temia ser capturado. De tempos em tempos, parava de matar. Análise dos períodos em que ele ficou inativo sugere que as interrupções podem ter sido causadas por casos em que ele quase foi pego em flagrante. Não houve mortes entre novembro de 1979 e abril de 1981, por exemplo, porque Shipman fracassou na tentativa de matar Alice Gorton. Ele pensou que ela estivesse morta e dizia à sua filha que não seria preciso uma autópsia quando Gorton gemeu. Ela ainda estava viva.
A chegada inesperada de uma enfermeira distrital enquanto ele praticava outro assassinato, em 1989, parece ter exercido efeito semelhante. Quando ele recomeçou a matar, suas vítimas eram novamente doentes terminais -""como se estivesse entrando numa piscina pelo lado mais raso, para ver se ainda era capaz de matar".
O relatório também menciona a maneira espantosa pela qual Shipman foi capturado -quando apareceu com um testamento grosseiramente falsificado, dizendo que era de Kathleen Grundy, sua última vítima. Ele deveria saber que a filha dela era advogada e, conforme conclui o relatório da juíza Janet Smith, ""deve ter tentado chamar a atenção para o que vinha fazendo". ""Acho provável que o conflito entre o que o levava a matar e seu pavor de ser detectado deve tê-lo conduzido à beira de um colapso", ela conclui.
Agora o inquérito vai procurar compreender por que Shipman passou tanto tempo cometendo seus crimes sem ser detectado.
O inquérito final, no qual 30 funcionários estudaram os depoimentos de 3.500 testemunhas apenas para a primeira fase, será concluído em um ano.


Tradução de Clara Allain


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