|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Retrato psicológico revela depressão
IAN HERBERT
DO "THE INDEPENDENT"
A contagem de mortos divulgada ontem pelo relatório do inquérito sobre os crimes de Harold
Shipman foi acompanhada por
um retrato psicológico de um indivíduo profundamente infeliz e
cronicamente deprimido, impelido a manifestar um grau espantoso de frieza e indiferença.
O relatório da juíza Janet Smith
não conseguiu oferecer uma explicação conclusiva para seus crimes, reconhecendo que é pouco
provável que Shipman algum dia
coopere para sua própria análise
psiquiátrica. Mas, com a ajuda de
quatro especialistas do Instituto
de Psiquiatria e baseada em relatos do comportamento do médico e do padrão que seguia em seus
crimes, ela traçou um retrato psicológico do assassino.
O primeiro assassinato é uma
parte crucial desse retrato. Na primavera de 1975, Shipman, que começara a trabalhar como clínico
geral um ano antes, bateu à porta
de Eva Lyons à noite. Ela era
doente em fase terminal, e Shipman disse ao marido dela, Richard, que tinha alguma coisa que
a ""ajudaria a seguir seu caminho".
Às 23h20, ela estava morta.
Essa morte está longe de ser a
mais repulsiva das 215 atribuídas
a Shipman pela juíza. Ela reconheceu que algumas pessoas podem considerar que se tratou, na
prática, de eutanásia. Mas também deixou clara a convicção de
Shipman de que ele sabia quando
a vida de um paciente deveria terminar. Mais tarde, após a morte
de um paciente, ele frequentemente dizia que ""era melhor assim". Em suas próprias palavras,
ditas a testemunhas, seria melhor
morrer do que ""viver como legume" ou no hospital, ""com fios
saindo de você".
Se os psiquiatras tivessem conseguido convencer Shipman a
sentar-se diante deles -ele se recusou a cooperar com a equipe
responsável pelo inquérito-, teriam lhe perguntado o que o levou a estudar medicina. Ele pode
ter escolhido a profissão após a
morte de sua mãe, quando ele tinha 17 anos, fator que já foi citado
anteriormente como possível explicação para seus crimes. O fato
de ter se tornado clínico geral numa cidade pequena, em lugar de
integrante da elite médica, também pode ter sido motivo de frustração para ele, sugere o relatório.
Uma coisa é certa: os crimes não
tiveram motivação financeira ou
sexual. Mas há pistas que indicam
algo sobre sua psicologia, na medida em que seu isolamento social
era quase total. Seus colegas o
consideravam distante e diziam
que ele agia com arrogância. Sua
vida comunitária ativa -ele era
membro do conselho de direção
de uma escola, torcedor do time
de rúgbi local e secretário do comitê local de medicina- deveria
ter lhe valido um largo círculo de
amizades, mas Shipman não tinha amigos.
O relatório também menciona
seu alto nível de agressividade e
sentimento de superioridade, manifestados na maneira como humilhou um jovem representante
de vendas de medicamentos e seu
comportamento numa palestra
sobre medicina. Segundo uma
testemunha, nesta última Shipman ""a todo momento interrompia o palestrante convidado para
discordar do que ele dizia, num
tom extremamente pomposo.
Seu comportamento virou motivo de constrangimento para todos que o conheciam".
Os psiquiatras disseram no inquérito que a arrogância e o excesso de confiança de Shipman
eram, ""quase certamente, um disfarce para mascarar sua baixa auto-estima". Dependente de opiáceos durante a primeira fase de
sua carreira médica, Shipman
provavelmente passou a maior
parte de sua vida adulta revoltado, profundamente infeliz e sofrendo de depressão crônica, eles
concluíram.
A dependência de uma droga
indica que ele tinha vários problemas subjacentes. A juíza Janet
Smith comentou: ""Me parece
quase certo que o problema que o
levou a tornar-se dependente nos
anos 1970 não foi resolvido e provavelmente tornou-se parte permanente de sua psique".
Embora suas características
pessoais aparentes não bastem
para explicar suas ações, os psiquiatras sugerem a possibilidade
de que Shipman tenha ""desenvolvido o medo da morte e a necessidade de controlá-la". Ele pode ter
sentido um interesse mórbido pela morte, experimentado prazer
com ela e sentido que a morte aliviava ""a pressão ou a ansiedade
intoleráveis que sentia".
Suas primeiras vítimas foram
doentes terminais, como Eva
Lyons, que representavam perigo
mínimo de detecção e provavelmente lhe pareciam ser as mortes
carregadas da menor culpa moral. Ele as matava porque não seriam ameaça a sua própria segurança e porque suas mortes poderiam ser justificadas.
A intensificação paulatina das
mortes após 1994 demonstra uma
""dependência" do ato de matar,
sugere o relatório. Após os assassinatos, enquanto os parentes se
reuniam em volta das vítimas,
Shipman sentia prazer em agir como ser onisciente, um ""mestre de
cerimônias" controlador, concluiu o relatório. "Ele passava instruções sobre a retirada do cadáver e oferecia sua explicação da
morte, acrescentando observações ao estilo de "ela estava comida pelo câncer'", diz o relatório.
As vítimas escolhidas oferecem
mais um vislumbre do pensamento do assassino. Além dos
doentes terminais, ele se mostrava especialmente disposto a matar pessoas que tinham perdido
entes queridos. Além disso, parece ter matado pacientes que pediam muito de seu tempo ou recursos, considerados irritantes.
O relatório indica que Shipman
temia ser capturado. De tempos
em tempos, parava de matar.
Análise dos períodos em que ele
ficou inativo sugere que as interrupções podem ter sido causadas
por casos em que ele quase foi pego em flagrante. Não houve mortes entre novembro de 1979 e abril
de 1981, por exemplo, porque
Shipman fracassou na tentativa
de matar Alice Gorton. Ele pensou que ela estivesse morta e dizia
à sua filha que não seria preciso
uma autópsia quando Gorton gemeu. Ela ainda estava viva.
A chegada inesperada de uma
enfermeira distrital enquanto ele
praticava outro assassinato, em
1989, parece ter exercido efeito semelhante. Quando ele recomeçou
a matar, suas vítimas eram novamente doentes terminais -""como se estivesse entrando numa
piscina pelo lado mais raso, para
ver se ainda era capaz de matar".
O relatório também menciona a
maneira espantosa pela qual
Shipman foi capturado -quando apareceu com um testamento
grosseiramente falsificado, dizendo que era de Kathleen Grundy,
sua última vítima. Ele deveria saber que a filha dela era advogada
e, conforme conclui o relatório da
juíza Janet Smith, ""deve ter tentado chamar a atenção para o que
vinha fazendo". ""Acho provável
que o conflito entre o que o levava
a matar e seu pavor de ser detectado deve tê-lo conduzido à beira de
um colapso", ela conclui.
Agora o inquérito vai procurar
compreender por que Shipman
passou tanto tempo cometendo
seus crimes sem ser detectado.
O inquérito final, no qual 30
funcionários estudaram os depoimentos de 3.500 testemunhas
apenas para a primeira fase, será
concluído em um ano.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Doutor Morte: Médico britânico matou ao menos 215 Próximo Texto: Oriente Médio: Israel pode deportar parentes de terroristas Índice
|