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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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IRAQUE OCUPADO

Reação moderada de general a pedido de renúncia de Rumsfeld é sinal de moral baixo e indisciplina

Pós-guerra estressa tropas americanas

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os americanos cometeram o erro de acreditar na sua própria propaganda. O resultado é a atual crise no moral e na disciplina das suas tropas de ocupação no Iraque, dramaticamente demonstrada por soldados que criticaram o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, em um programa de televisão na quarta-feira passada. Um deles chegou a pedir a renúncia do secretário.
O episódio é considerado uma quebra de disciplina intolerável em qualquer força armada, em qualquer país -ou mesmo em qualquer época.
As corporações militares estão entre as mais ciosas de disciplina. O argumento é que, em uma atividade em que se joga com vidas, uma ordem tem de ser obedecida rapidamente, pois a contestação criaria um ambiente de inação, aproveitado pelo inimigo.
Os militares de todos os países têm regulamentos para punir esse tipo de conduta; criticar um superior publicamente dá no mínimo alguns dias de cadeia.
Mas a crise pela qual passam as tropas americanas teve um sinal revelador na própria reação moderada do comandante americano, general John Abizaid.
Ele declarou que os soldados que criticaram o secretário poderiam sofrer "reprimendas verbais ou algo mais severo".
A moderação pode fazer sentido no ambiente em que estão as tropas. A euforia da vitória, que deveria ser seguida pela volta para casa e quem sabe um desfile triunfal, foi substituída por mais semanas ou meses de arriscada ocupação de um país com língua e hábitos estranhos, no qual um inimigo pode aparecer de repente.
Agora sim é a hora de voltar a fazer comparações com a experiência no Vietnã. Ocupar é bem mais difícil que combater.
"O mais grave obstáculo no Vietnã uma geração atrás foi que quase todos os americanos que serviram ali detestavam o lugar e desprezavam a população. Quando soldados falavam pejorativamente de "gooks" ou "dinks", eles não se referiam apenas ao inimigo", escreveu o historiador militar britânico Max Hastings no jornal "The Daily Telegraph", comparando com a ocupação do Iraque.
Para Hastings, o erro fatal é entender que a missão é principalmente militar. "As canhoneiras são a parte mais fácil e menos importante da projeção ultramarina de poder. O trabalho é principalmente sobre bons engenheiros de saneamento", conclui Hastings.
Que haveria problemas na fase de ocupação era algo previsto por muitos analistas militares.
A propaganda dos EUA dizia que suas tropas seriam acolhidas como "libertadores". De fato, derrubaram a ditadura de Saddam. Já a reconstrução é uma tarefa muito mais difícil, exigindo uma ocupação por meses ou anos.
Tudo isso também foi previsto, mas o otimismo com a rápida tomada de Bagdá passou ao soldado comum a idéia de que logo voltaria para casa.
Bastou um número aparentemente coordenado de ataques para mostrar que ocupar um país depois de uma guerra continua sendo uma operação arriscada.

Pés no chão
A ênfase da atual administração do Departamento da Defesa americano em forças especiais e bombas inteligentes voltadas para uma estratégia de "choque e pavor" colocou de lado uma velha verdade histórica. Ocupar um território inimigo tem de ser feito principalmente pela infantaria, o soldado no chão. O grosso precisa ser feito por tropas americanas.
Só que o Exército dos EUA tem diminuído seu tamanho cada vez mais desde o fim da Guerra Fria. Das 33 brigadas de combate ativas, 21 estão fora de suas bases -16 no Iraque, duas no Afeganistão, duas na Coréia do Sul e uma nos Bálcãs.

Precedente
O Iraque já foi ocupado no passado por uma potência ocidental que está lá de volta, o Reino Unido. Os americanos também já tiveram de ocupar regiões do mundo subdesenvolvido antes, em meio a grupos hostis. Os problemas da atual ocupação não são, portanto, novidade.
Na opinião de um dos mais respeitados historiadores militares, o britânico John Keegan, o governo do seu país "deveria ter levado a história mais em consideração". O mesmo vale para os EUA, disse ele em um artigo recente.
"Os americanos estiveram envolvidos em operações de pacificação no ex-império espanhol, tanto nas Filipinas como no Caribe, por anos depois da sua vitória de 1898. Para o Exército britânico, pacificação nas colônias era um modo de vida, na Índia, na África e no ex-Império Otomano, ano após ano", disse.
Ao contrário do que poderia parecer, ele considera que o número de baixas entre os anglo-americanos é menor do que poderia ser.
Depois que ocuparam o Iraque após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os britânicos enfrentaram uma revolta em 1920 na qual tiveram mais de 2.000 mortos e feridos.

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