São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Sucesso teatral em Londres retoma dilemas dos anos 60 e 70

Em "Rock'n'Roll", o dramaturgo Tom Stoppard homenageia o amigo Havel em passeio pela história tcheca, da Primavera de Praga à Revolução de Veludo

REGINA ZAPPA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Para ser um bom comunista, você primeiro tem que ser bom." "Rock 'n" Roll", o maior sucesso da temporada teatral do verão londrino, pode ser compreendido a partir de frases como esta, dita por Jan, um estudante de filosofia tcheco (Rufus Sewell), a seu professor marxista de Cambridge, o inglês Max (Brian Cox), em um embate verbal que se prolonga por toda a peça do teatrólogo Tom Stoppard.
A peça de Stoppard, tcheco que deixou o país com os pais aos dois anos de idade rumo à Inglaterra, trata do período que vai da Primavera de Praga à Revolução de Veludo a partir de duas perspectivas: a do jovem idealista tcheco -que volta à sua terra quando os tanques do Pacto de Varsóvia põem fim ao sonho de uma Tchecoslováquia livre da ocupação soviética- e a do intelectual inglês, que defende a ditadura do proletariado.
O primeiro ama o rock e se opõe ao domínio comunista soviético. O segundo dá sua alma pelo socialismo e representa a esquerda européia engajada que está do lado de fora da chamada Cortina de Ferro.
As discussões provocadas por Jan, que ao longo da peça se afasta dos ideais socialistas para se aproximar da visão libertária do rock da época, se intensificam à medida que ele questiona as idéias comunistas do velho professor, por quem nutre carinho de filho. Pai de uma filha hippie que passa a vida tentando se encontrar, Max não se conforma quando vê que Jan, no retorno a seu país, se desencanta com o regime.
Max vai algumas vezes a Praga para rever o aluno e constata que a música o empurra para longe dos dogmas comunistas. Jan se desilude quando o regime tcheco confisca seus discos de rock e persegue a banda tcheca Plastic People of the Universe, cujos integrantes (como na vida real) acabam presos, em 1976. Jan, que acreditava que uma banda de rock era mais eficiente na contestação ao regime do que a militância dissidente - "A polícia adora os dissidentes porque depende deles para dar sentido a suas ações. Os roqueiros da Plastic People ameaçam o regime por sua suprema indiferença"-, acaba aderindo à dissidência após a prisão da banda.
A ruptura entre "pai" e "filho" fica clara quando os dois se encontram em Praga e chegam à síntese daquilo que cada um almeja. Jan diz que tudo o que ele quer do regime se resume na frase: "Leave me alone", "Deixe-me em paz" ou, talvez mais apropriado, "Deixe eu ficar na minha". Max rebate, dizendo que tudo o que conta é o que as massas reivindicam: "Give me a break", "Me dá um descanso" ou, melhor dizendo, "Me dêem uma chance de viver dignamente". Um persegue a felicidade na liberdade. O outro, no bem coletivo.
A peça, toda ela permeada por músicas de Pink Floyd, Bob Dylan, Rolling Stones, U2, The Doors, The Plastic People of the Universe, exibe trechos das letras projetados numa grande tela, e termina apoteoticamente com a ida de Jan e seus amigos ao primeiro concerto dos Rolling Stones na Praga pós-comunista dos 90.
"Rock 'n" Roll" está sendo considerada a mais comovente e autobiográfica peça da carreira de Stoppard. Na platéia do Royal Court Theatre, na noite de estréia, estava, lado a lado com Mick Jagger e Dave Gilmour, do Pink Floyd, Vaclav Havel, o dramaturgo a quem a peça é dedicada e que se tornou o primeiro presidente tcheco do pós-comunismo. Ele é citado várias vezes na peça de Stoppard. Os dois, agora perto dos 70 anos, são amigos desde os anos 60, e Havel é grato ao companheiro que o defendeu publicamente quando ele foi preso em Praga, nos 70.
A Primavera de Praga aconteceu em 1968, quando Alexander Dubcek, então secretário-geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia, iniciou um movimento de democratização que arrebatou os jovens e boa parte da população. O movimento foi dissolvido pelos tanques do Pacto de Varsóvia.
Em 1977, um novo movimento de contestação ao regime começou a se estruturar, com a publicação da Carta 77, um manifesto assinado por diversos intelectuais, entre eles Havel, que protestava contra a repressão e exigia maior respeito aos direitos humanos. Nova reação e prisões, incluindo a de Havel. Em 1989, Alexander Dubcek assumiu a presidência da Câmara dos Deputados. Vaclav Havel tornou-se presidente da República. Era a Revolução de Veludo.
É este o pano de fundo da história de Jan e Max. A paixão de Jan pelo rock e por tudo o que ele representava em termos de não-conformismo acaba revelando a questão por trás de todo o debate: é possível conciliar liberdade com igualdade? Em entrevista no dia da estréia, Havel afirma que, na época, "toda expressão de liberdade acabava em conflito com o sistema".
A peça de Stoppard revolve as questões que perseguiram gerações de jovens idealistas nos anos 60 e 70, quando se queria liberdade, justiça, igualdade, paz e amor. Talvez por isto esteja despertando tanto interesse. Em "Rock 'n" Roll", Stoppard volta a tocar nos temas que atravessam os tempos. Ele nos diz que a igualdade deve ser desejada, não imposta, e que a liberdade deveria ser conseqüência desse desejo. Mas se não é imposta, será ela realmente desejada?


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