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Sucesso teatral em Londres retoma dilemas dos anos 60 e 70
Em "Rock'n'Roll", o dramaturgo Tom Stoppard homenageia o amigo Havel em passeio pela história tcheca, da Primavera de Praga à Revolução de Veludo
REGINA ZAPPA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Para ser um bom comunista, você primeiro tem que ser
bom." "Rock 'n" Roll", o maior
sucesso da temporada teatral
do verão londrino, pode ser
compreendido a partir de frases como esta, dita por Jan, um
estudante de filosofia tcheco
(Rufus Sewell), a seu professor
marxista de Cambridge, o inglês Max (Brian Cox), em um
embate verbal que se prolonga
por toda a peça do teatrólogo
Tom Stoppard.
A peça de Stoppard, tcheco
que deixou o país com os pais
aos dois anos de idade rumo à
Inglaterra, trata do período
que vai da Primavera de Praga
à Revolução de Veludo a partir
de duas perspectivas: a do jovem idealista tcheco -que volta à sua terra quando os tanques do Pacto de Varsóvia
põem fim ao sonho de uma
Tchecoslováquia livre da ocupação soviética- e a do intelectual inglês, que defende a ditadura do proletariado.
O primeiro ama o rock e se
opõe ao domínio comunista soviético. O segundo dá sua alma
pelo socialismo e representa a
esquerda européia engajada
que está do lado de fora da chamada Cortina de Ferro.
As discussões provocadas
por Jan, que ao longo da peça
se afasta dos ideais socialistas
para se aproximar da visão libertária do rock da época, se
intensificam à medida que ele
questiona as idéias comunistas
do velho professor, por quem
nutre carinho de filho. Pai de
uma filha hippie que passa a vida tentando se encontrar, Max
não se conforma quando vê que
Jan, no retorno a seu país, se
desencanta com o regime.
Max vai algumas vezes a Praga para rever o aluno e constata
que a música o empurra para
longe dos dogmas comunistas.
Jan se desilude quando o regime tcheco confisca seus discos
de rock e persegue a banda
tcheca Plastic People of the
Universe, cujos integrantes
(como na vida real) acabam
presos, em 1976. Jan, que acreditava que uma banda de rock
era mais eficiente na contestação ao regime do que a militância dissidente - "A polícia adora os dissidentes porque depende deles para dar sentido a
suas ações. Os roqueiros da
Plastic People ameaçam o regime por sua suprema indiferença"-, acaba aderindo à dissidência após a prisão da banda.
A ruptura entre "pai" e "filho" fica clara quando os dois
se encontram em Praga e chegam à síntese daquilo que cada
um almeja. Jan diz que tudo o
que ele quer do regime se resume na frase: "Leave me alone",
"Deixe-me em paz" ou, talvez
mais apropriado, "Deixe eu ficar na minha". Max rebate, dizendo que tudo o que conta é o
que as massas reivindicam:
"Give me a break", "Me dá um
descanso" ou, melhor dizendo,
"Me dêem uma chance de viver
dignamente". Um persegue a
felicidade na liberdade. O outro, no bem coletivo.
A peça, toda ela permeada
por músicas de Pink Floyd, Bob
Dylan, Rolling Stones, U2, The
Doors, The Plastic People of
the Universe, exibe trechos das
letras projetados numa grande
tela, e termina apoteoticamente com a ida de Jan e seus amigos ao primeiro concerto dos
Rolling Stones na Praga pós-comunista dos 90.
"Rock 'n" Roll" está sendo
considerada a mais comovente
e autobiográfica peça da carreira de Stoppard. Na platéia do
Royal Court Theatre, na noite
de estréia, estava, lado a lado
com Mick Jagger e Dave Gilmour, do Pink Floyd, Vaclav
Havel, o dramaturgo a quem a
peça é dedicada e que se tornou
o primeiro presidente tcheco
do pós-comunismo. Ele é citado várias vezes na peça de
Stoppard. Os dois, agora perto
dos 70 anos, são amigos desde
os anos 60, e Havel é grato ao
companheiro que o defendeu
publicamente quando ele foi
preso em Praga, nos 70.
A Primavera de Praga aconteceu em 1968, quando Alexander Dubcek, então secretário-geral do Partido Comunista da
Tchecoslováquia, iniciou um
movimento de democratização
que arrebatou os jovens e boa
parte da população. O movimento foi dissolvido pelos tanques do Pacto de Varsóvia.
Em 1977, um novo movimento de contestação ao regime começou a se estruturar,
com a publicação da Carta 77,
um manifesto assinado por diversos intelectuais, entre eles
Havel, que protestava contra a
repressão e exigia maior respeito aos direitos humanos.
Nova reação e prisões, incluindo a de Havel. Em 1989, Alexander Dubcek assumiu a presidência da Câmara dos Deputados. Vaclav Havel tornou-se
presidente da República. Era a
Revolução de Veludo.
É este o pano de fundo da
história de Jan e Max. A paixão
de Jan pelo rock e por tudo o
que ele representava em termos de não-conformismo acaba revelando a questão por trás
de todo o debate: é possível
conciliar liberdade com igualdade? Em entrevista no dia da
estréia, Havel afirma que, na
época, "toda expressão de liberdade acabava em conflito
com o sistema".
A peça de Stoppard revolve
as questões que perseguiram
gerações de jovens idealistas
nos anos 60 e 70, quando se
queria liberdade, justiça, igualdade, paz e amor. Talvez por isto esteja despertando tanto interesse. Em "Rock 'n" Roll",
Stoppard volta a tocar nos temas que atravessam os tempos.
Ele nos diz que a igualdade deve ser desejada, não imposta, e
que a liberdade deveria ser
conseqüência desse desejo.
Mas se não é imposta, será ela
realmente desejada?
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