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NO CORAÇÃO DOS PROTESTOS
Em visita à cidade, Mesa promete justiça
Orgulhosa, El Alto chora seus mortos
ENVIADO ESPECIAL A EL ALTO
Quando for escrita, a história
dos protestos populares que levaram à renúncia do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, na última sexta-feira, terá
um capítulo especial sobre El
Alto, a 12 km de La Paz. Em
apenas dois dias, entre 12 e 13
de outubro, caíram na cidade
54 dos 74 manifestantes mortos em confrontos com o Exército e a polícia.
A cidade com aproximadamente 800 mil moradores concentra a maioria dos migrantes
pobres do interior que vai para
La Paz em busca de trabalho.
Segundo dados oficiais, cerca
de 70% são aymarás.
A reportagem da Folha esteve na cidade no sábado e ontem. Nos dois dias, as várias
bandeiras bolivianas, todas
com sacos plásticos pretos
amarrados na ponta, contrastavam com o sorriso das pessoas que as empunhavam. Sorriso espontâneo, raro de flagrar
no semblante quase sempre sisudo do indígena do altiplano.
Na avenida que leva a La Paz,
dezenas e dezenas de caminhões e ônibus lotados de mineiros da região de Oruro desfilavam no sábado depois de terem participado dos protestos
no centro da cidade durante toda semana passada.
Eram saudados com palmas
e acenos pelos milhares de altenhos que se perfilavam na calçada e em cima dos vagões de
um trem jogado de cima de um
pontilhão durante os protestos.
Os mineiros, todos com rostos
índios, todos pobres, acenavam de volta.
Pouco antes, em visita bem
simbólica, o novo presidente
Carlos Mesa prometera em discurso investigar as mortes.
"Nem esquecimento, nem vingança. Justiça." Foi aplaudido.
Pedreiro morto
Na visita ao bairro do Rio Seco, a reportagem da Folha foi
guiada por dois moradores: o
eletricista desempregado Juan
Apaza Rios, 50, e a líder comunitária Juana Calani, 45. Os
dois disseram ter participado
dos protestos.
Mais do que os sindicatos, em
La Paz e em El Alto foram as
"juntas vecinales" (associações
de bairros) que organizaram os
protestos contra os planos de
exportar gás natural que, após
o massacre de 12 de outubro
em Rio Seco, quando 26 morreram, passaram a exigir a renúncia de Sánchez de Lozada.
Somos levados à casa do pedreiro aymará Francisco Ajllahuanca, 43, morto no dia 12.
Casado, tinha dois filhos, de 16
e 13 anos. Sua mulher, a dona-de-casa Petrona Quispe, 46, explica que ele não participava
dos protestos e que foi morto
pelo Exército.
"Ele saiu de casa para ver o
que estava acontecendo e morreu", diz. Seu corpo foi encontrado em frente à casa vizinha,
atingida por aproximadamente dez disparos.
"Meu filho de três anos não
sai mais de casa. Ele está doente
e traumatizado", afirma a vizinha, a dona-de-casa Gregoria
Yujira, 26.
"Mais do que outra coisa,
meus filhos perderam o carinho do pai", diz Petrona, quase
sem demonstrar emoção. Desde a morte do marido, há uma
semana, o único agente do Estado que apareceu foi o médico
legista.
Soldado desconhecido
Os guias nos levam a um posto de gasolina abandonado.
Nesse local, um grupo de aproximadamente 20 pessoas se
aglomerava em torno de um altar em homenagem ao único
soldado entre os 26 mortos do
último dia 12.
"Ele foi assassinado pelo seu
tenente porque se recusou a
matar uma senhora", conta
uma mulher. Logo depois, alguém diz que ele foi morto por
um capitão ao se negar a matar
um velho.
Outro morador mostra à reportagem o capacete com um
furo de bala e três pedrinhas
brancas.
"São os dentes do soldado. A
língua dele também estava aqui
até ontem, mas um cachorro
deve ter comido", afirma. Havia ali também peças de roupa
e uma garrafa com um pouco
de um líquido verde -"ele
gostava de beber refrigerante".
Ninguém ali, no entanto, sabia o nome do soldado, quem
são seus parentes nem para onde o corpo foi levado.
Fim do passeio. Ao se despedir da reportagem, Juana diz,
orgulhosa: "Apesar de tudo,
nós fomos valentes".
(FM)
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