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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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NO CORAÇÃO DOS PROTESTOS

Em visita à cidade, Mesa promete justiça

Orgulhosa, El Alto chora seus mortos

ENVIADO ESPECIAL A EL ALTO

Quando for escrita, a história dos protestos populares que levaram à renúncia do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, na última sexta-feira, terá um capítulo especial sobre El Alto, a 12 km de La Paz. Em apenas dois dias, entre 12 e 13 de outubro, caíram na cidade 54 dos 74 manifestantes mortos em confrontos com o Exército e a polícia.
A cidade com aproximadamente 800 mil moradores concentra a maioria dos migrantes pobres do interior que vai para La Paz em busca de trabalho. Segundo dados oficiais, cerca de 70% são aymarás.
A reportagem da Folha esteve na cidade no sábado e ontem. Nos dois dias, as várias bandeiras bolivianas, todas com sacos plásticos pretos amarrados na ponta, contrastavam com o sorriso das pessoas que as empunhavam. Sorriso espontâneo, raro de flagrar no semblante quase sempre sisudo do indígena do altiplano.
Na avenida que leva a La Paz, dezenas e dezenas de caminhões e ônibus lotados de mineiros da região de Oruro desfilavam no sábado depois de terem participado dos protestos no centro da cidade durante toda semana passada.
Eram saudados com palmas e acenos pelos milhares de altenhos que se perfilavam na calçada e em cima dos vagões de um trem jogado de cima de um pontilhão durante os protestos. Os mineiros, todos com rostos índios, todos pobres, acenavam de volta.
Pouco antes, em visita bem simbólica, o novo presidente Carlos Mesa prometera em discurso investigar as mortes. "Nem esquecimento, nem vingança. Justiça." Foi aplaudido.

Pedreiro morto
Na visita ao bairro do Rio Seco, a reportagem da Folha foi guiada por dois moradores: o eletricista desempregado Juan Apaza Rios, 50, e a líder comunitária Juana Calani, 45. Os dois disseram ter participado dos protestos.
Mais do que os sindicatos, em La Paz e em El Alto foram as "juntas vecinales" (associações de bairros) que organizaram os protestos contra os planos de exportar gás natural que, após o massacre de 12 de outubro em Rio Seco, quando 26 morreram, passaram a exigir a renúncia de Sánchez de Lozada.
Somos levados à casa do pedreiro aymará Francisco Ajllahuanca, 43, morto no dia 12. Casado, tinha dois filhos, de 16 e 13 anos. Sua mulher, a dona-de-casa Petrona Quispe, 46, explica que ele não participava dos protestos e que foi morto pelo Exército.
"Ele saiu de casa para ver o que estava acontecendo e morreu", diz. Seu corpo foi encontrado em frente à casa vizinha, atingida por aproximadamente dez disparos.
"Meu filho de três anos não sai mais de casa. Ele está doente e traumatizado", afirma a vizinha, a dona-de-casa Gregoria Yujira, 26.
"Mais do que outra coisa, meus filhos perderam o carinho do pai", diz Petrona, quase sem demonstrar emoção. Desde a morte do marido, há uma semana, o único agente do Estado que apareceu foi o médico legista.

Soldado desconhecido
Os guias nos levam a um posto de gasolina abandonado. Nesse local, um grupo de aproximadamente 20 pessoas se aglomerava em torno de um altar em homenagem ao único soldado entre os 26 mortos do último dia 12.
"Ele foi assassinado pelo seu tenente porque se recusou a matar uma senhora", conta uma mulher. Logo depois, alguém diz que ele foi morto por um capitão ao se negar a matar um velho.
Outro morador mostra à reportagem o capacete com um furo de bala e três pedrinhas brancas.
"São os dentes do soldado. A língua dele também estava aqui até ontem, mas um cachorro deve ter comido", afirma. Havia ali também peças de roupa e uma garrafa com um pouco de um líquido verde -"ele gostava de beber refrigerante".
Ninguém ali, no entanto, sabia o nome do soldado, quem são seus parentes nem para onde o corpo foi levado.
Fim do passeio. Ao se despedir da reportagem, Juana diz, orgulhosa: "Apesar de tudo, nós fomos valentes". (FM)


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