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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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"Regimes latinos catalisam crises"

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"Parece que nossos regimes presidencialistas são catalisadores de crises", diz o historiador Francisco Doratioto, 46. Para o especialista em história das relações internacionais no Cone Sul e autor de "Maldita Guerra - Nova História da Guerra do Paraguai" (Companhia das Letras), o fato de os governos latino-americanos do período de redemocratização não terem conseguido superar problemas econômicos herdados do passado está na raiz de insatisfações populares como a que culminou com a renúncia do presidente boliviano Sánchez de Lozada.
Leia trechos da entrevista que o professor da Universidade Católica de Brasília concedeu à Folha.

Folha - Como você vê a renúncia do presidente Sánchez de Lozada?
Francisco Doratioto -
Lozada foi forçado a sair por um levante popular. Recentemente, vimos outros na América Latina -no Equador, no Peru e na Argentina. Parece que nossos regimes presidencialistas são catalisadores de crise, na medida em que não oferecem alternativas institucionais para substituir chefes de governo que se tornam impopulares.

Folha - Há uma insatisfação comum nos países que conheceram convulsões sociais? Seria com a democracia, com o neoliberalismo?
Doratioto -
Não acredito que se possa dar um adjetivo à democracia, chamando-a de neoliberal. Essa discussão é antiga na América Latina. Até o início dos anos 80, no contexto de Guerra Fria, classificava-se a democracia de burguesa. Aí se trocou o palavrão "burguesa" por outro, "neoliberal".
O que aconteceu foi que, com os processos de redemocratização no Cone Sul, houve a abertura das economias. A isso somou-se uma herança de governos anteriores -a dívida externa, modelos equivocados de desenvolvimento etc.
Quando pressionados por demandas populares, os primeiros governos da redemocratização tomaram decisões muitas vezes populistas, equivocadas e até experimentais, que agravaram a situação ou não atenderam os interesses dos setores populares.
Não creio que o descontentamento seja com a democracia, mas contra a situação de miséria.

Folha - O sr. acha que a América Latina segue um destino conjunto, de ondas históricas simultâneas, e que estaríamos vendo a crise de um modelo político?
Doratioto -
Quando se fala do índio boliviano, trata-se do camponês, que é explorado e está na miséria desde o período colonial. Não é uma onda, é uma permanência. Durante todo o século 19 e grande parte do 20, as elites latino-americanas foram dependentes voluntárias. A Argentina chegou a ser uma das maiores rendas per capita do mundo na situação de dependente. A elite argentina fez uma opção pela dependência, que lhe parecia lógica, pois trazia crescimento econômico. Mas isso não construiu bases para a industrialização e o desenvolvimento.

Folha - Há um paralelo possível entre o caso boliviano e as turbulências recentes no Paraguai?
Doratioto -
Os dois são países mediterrâneos, sem saída para o mar. Por isso, são economias que ficaram isoladas da divisão internacional do trabalho. E é muito comum vermos -até em alguns livros didáticos- a explicação de que a pobreza do continente foi causada pela inserção da América Latina na divisão internacional do trabalho. Isso é só parcialmente verdadeiro, pois se a não-inserção internacional fosse fator de desenvolvimento, Paraguai e Bolívia seriam hoje os países mais desenvolvidos do continente.

Folha - Até que ponto o argumento da Guerra do Pacífico foi instrumentalizado pela oposição a Sánchez de Lozada?
Doratioto -
A questão da guerra do Pacífico pode ter sido instrumentalizada por facções políticas por ser um sentimento real na sociedade boliviana. É aquilo que um teórico de relações internacionais, Pierre Renouvin, chamou de "força profunda", um fator que pode ser econômico, psicológico, político, cultural, que transcende a circunstância histórica e que persiste no longo tempo.
Na Bolívia, esse sentimento de perda de território está entranhado na população. Mas só o nacionalismo sozinho não explica a situação sem a questão da pobreza.

Folha - Como acha que será o novo governo boliviano?
Doratioto -
Carlos Mesa deve atender a bandeiras dos oposicionistas para estabilizar-se e combater a pobreza. Resta a incógnita da postura dos EUA, que perderam, com a renúncia de Lozada, um aliado fiel.


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