São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O NOVO PAPA

ANÁLISE

Herói dos conservadores se tornou papa

Giulio Napolitano/France Presse
Bento 16 é saudado por uma multidão de fiéis ao se mudar do apartamento que ocupava antes de ser escolhido papa, em Roma


JOHN L. ALLEN JR.

Ao eleger o 265º papa da Igreja Católica Romana, o colégio de cardeais fez uma opção ousada por um homem que, apesar de seus 78 anos de idade, parece estar destinado a liderar um pontificado forte e conseqüente: Joseph Ratzinger, o arquiteto intelectual do papado de João Paulo 2º, durante o qual foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Ratzinger é um tipo de indivíduo raro entre as autoridades do Vaticano: uma celebridade entre homens que costumam mover-se nas sombras. Ele teve um best-seller incontestável em 1986 em "O Relatório Ratzinger", uma entrevista que concedeu ao jornalista italiano Vittorio Messori e que rendeu um livro. Ratzinger é provavelmente a única alta autoridade da Cúria Romana que a maioria dos católicos seria capaz de identificar e é um homem sobre o qual muitos católicos têm opiniões formadas e contundentes.
Ele é herói da ala conservadora da Igreja Católica, um homem que teve a força necessária para delinear as verdades tradicionais da fé num tempo de dúvidas e dissidências. Para os liberais católicos, por outro lado, é uma figura que lembra a de Darth Vader -alguém que se apresenta como adversário temível de muitas das reformas com as quais os liberais sonham há muito tempo.
Foi Ratzinger, por exemplo, quem, em meados da década de 1980, liderou a repressão lançada pelo Vaticano contra a teologia da libertação, um movimento latino-americano que buscava alinhar a Igreja Católica com os movimentos progressistas em defesa das transformações sociais. Ratzinger enxergava a teologia da libertação como exportação européia que equivalia ao marxismo sob outra pele. Ele aplicou a força total da autoridade do Vaticano para interromper seu avanço.
Ele procurou redefinir a natureza das conferências episcopais em todo o mundo, insistindo que não possuíam autoridade para ensinar. A campanha resultou num documento lançado em 1998, "Apostolos Suos", visto por alguns como ataque contra conferências episcopais poderosas, como as dos Estados Unidos e da Alemanha, que, até certo ponto, funcionavam como um contrapeso ao Vaticano.
Foi Ratzinger quem, num documento de 1986 que ficou famoso, definiu a homossexualidade como "uma tendência mais ou menos forte voltada a um mal moral intrínseco". Na década de 1990, Ratzinger encabeçou uma campanha contra a teologia do pluralismo religioso, insistindo que o ensinamento tradicional de Cristo, como salvador único e singular da humanidade, não deveria ser comprometido. Esse esforço culminou em 2001 com o documento "Dominus Iesus", que afirmava que os não-cristãos ocupam uma "situação gravemente deficiente" comparados aos cristãos.
Estas talvez sejam as declarações mais conhecidas de Ratzinger ao longo dos anos, mas não são suas únicas afirmações controversas. Ele certa vez descreveu o budismo como "espiritualidade auto-erótica" e o rock como "veículo da anti-religião".
Ratzinger também já declarou, em muitas ocasiões, que a igreja do futuro talvez precise ser menor para se conservar fiel, fazendo referência ao destino de curto prazo da cristandade como "minoria criativa". Ele também já fez uso da metáfora da "semente de mostarda", sugerindo uma presença menor que, não obstante, carregue em si a capacidade de crescimento futuro, desde que se conserve fiel a ela mesma.
Tudo isso faz de Ratzinger um sinal de contradições para muitas pessoas, tanto católicas quanto não-católicas. Em outras palavras, como Bento 16 ele é um papa que dá início a seu ministério carregando tanto uma base de apoio forte quanto uma bagagem considerável, na medida em que uma larga faixa de observadores vai esperar dele um pontificado de linha-dura e com tendência a promover divisões.

Chama atenção de quem conhece Ratzinger o contraste entre a imagem polarizadora e intransigente, por um lado, e, por outro, seu lado privado bondoso, gentil e generoso

No entanto, sempre chamou a atenção de quem conhece Ratzinger pessoalmente o contraste entre sua imagem pública polarizadora e intransigente, por um lado, e, por outro, seu lado privado bondoso, gentil, generoso. Ratzinger em pessoa é alguém refinado, quase tímido, e os bispos que tratam com ele há anos afirmam de maneira quase unânime que ele é um bom ouvinte, alguém que se interessa realmente em trabalhar de maneira colegiada.
Os setores que nutrem receios em relação ao pontificado de Ratzinger estarão atentos, nos próximos dias e semanas, para indicativos de que será esse Ratzinger mais gentil e bondoso a figura que irá emergir como o papa Bento 16.
O próprio nome escolhido talvez constitua um indicativo. Embora a referência primeira possa ser a São Bento, o fundador do monasticismo europeu, não há dúvida de que o nome também remete a Bento 15, que foi papa entre 1914 e 1922 e pôs fim às campanhas conservadoras e antimodernistas do pontificado de São Pio 10.
Bento disse que, em lugar de preocupar-se com os menores indícios de erro doutrinal, bastava que alguém usasse "católico" como seu primeiro nome e "cristão" como seu nome de família.
É possível, então, que o papa Bento 16 estivesse enviando um indicativo sutil de que também ele gostaria de ser uma figura conciliadora, muito mais do que um papa autoritário e repressivo.
A história da vida de Ratzinger, sob muitos aspectos, resume a experiência do catolicismo europeu no século 20. Ele nasceu na Bavária em 1927 e cresceu à sombra da Alemanha nazista.
Enquanto estudava na escola secundária, a participação dos jovens na Juventude de Hitler foi tornada obrigatória, e Ratzinger foi matriculado por pouco tempo no movimento, embora tivesse pedido para ser retirado e nunca tivesse participado de qualquer atividade dela.
Mais tarde, foi recrutado obrigatoriamente pelo Exército alemão e cumpriu serviço militar por pouco tempo num batalhão antiaéreo, antes de desertar. Sua família era antinazista, e Ratzinger nunca demonstrou a menor afinidade pelo nacional-socialismo.
Quando refletiu sobre essa experiência, mais tarde em sua vida, Ratzinger concluiu que o cristianismo liberal alemão se mostrou o mais vulnerável à pressão de assimilação pela ideologia nazista, enquanto os setores conservadores que tinham a maior clareza em relação a sua própria identidade foram mais capazes de resistir. Parte de sua devoção intransigente às formas tradicionais da fé e da prática religiosas é sem dúvida reflexo dessa experiência.
Quando era teólogo jovem, Ratzinger foi perito, ou assistente teológico, do cardeal Joseph Frings no Concílio Vaticano 2º (1962-65) e foi visto como parte da ampla maioria progressista. Num toque de ironia, ele redigiu um discurso de Frings no qual se referiu ao Santo Ofício, que mais tarde se transformou na Congregação para a Doutrina da Fé, como um escândalo. Foi justamente essa congregação que ele terminaria por encabeçar durante o papado de João Paulo 2º.
Sua obra teológica, que para muitos é a mais conhecida, "Introdução ao Cristianismo", data desse período.
Com os protestos estudantis que varreram a Europa em 1968, Ratzinger, juntamente com uma larga faixa da opinião católica, começou a pressentir que alguma coisa perigosa havia sido solta na igreja pelos ventos reformistas do período pós-conciliar. Ele começou a seguir um rumo cada vez mais conservador. Em 1977 foi nomeado arcebispo de Munique pelo papa Paulo 6º, e, pouco depois, foi feito cardeal. Nessa condição, tomou parte dos dois conclaves de 1978.
Em 1981 Ratzinger foi chamado a Roma por João Paulo 2º para dirigir o departamento doutrinal do papa. Apesar da grande carga de trabalho imposta pelo cargo, ele continuou a publicar seus trabalhos próprios sobre teologia, liturgia e crítica cultural.
Seja o que for que se pense de suas posições teológicas, Ratzinger é quase universalmente reconhecido como um dos maiores intelectuais católicos de sua geração, homem de cultura e refinamento enormes.
Em seu tempo livre ele toca piano, e seu irmão Georg foi diretor do coral de Regensburg. Falando da música de Mozart, Ratzinger certa vez disse que "ela contém toda a tragédia da existência humana".
Para quem está atento para sinais de como ele pretende liderar, as imagens iniciais do papa Bento 16, no balcão central da praça São Pedro, sorrindo e acenando, falando se si mesmo como "trabalhador simples e humilde no vinhedo do Senhor", talvez fossem indicativos importantes.
Todo papa recebe o benefício de uma lua-de-mel, um período durante o qual o desejo avassalador dos católicos é vê-lo dar certo. Embora Bento 16 talvez precise dessa lua-de-mel mais do que a maioria dos papas, para tranqüilizar setores da opinião católica e secular preocupados com o que tudo isso significa, essas primeiras imagens parecem promissoras.

John L. Allen Jr. é correspondente no Vaticano da revista "National Catholic Reporter" (www.ncronline.org.).

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Para Frei Betto, eleição pôs a igreja 'de costas'
Próximo Texto: Eleição de Bento 16 espanta analistas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.