São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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Desenvolvimento depende de africanos, diz Graça Machel

EM MOÇAMBIQUE

"Tenho que atender a estas moças, que me estão a caçar como a uma gazela", disse a moçambicana Graça Machel a seus acompanhantes no aeroporto de Maputo, apontando para a reportagem da Folha, que a aguardava no local.
Uma gazela alta, elegante e risonha -essa a melhor descrição para a lendária combatente da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) na causa da independência em relação a Portugal (1975) e na luta anti-apartheid nos anos 80.
Antes de entrar para a militância política, Graça Machel, 57, estudou línguas germânicas na Universidade de Lisboa nos anos 60, oportunidade com que raras mulheres negras da colônia poderiam sonhar na época.
Viúva de Samora Machel (1933-1986), o "Guevara moçambicano", primeiro presidente do país após a independência, e atual mulher do líder sul-africano Nelson Mandela, 84, com quem se casou em 1998, Graça divide seu tempo entre a África do Sul e Moçambique, onde participa ativamente da reconstrução do país devastado pela guerra civil deflagrada no final dos anos 70 pela Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), guerrilha apoiada pelos então governos racistas da África do Sul e Rodésia (atual Zimbábue) e que durou quase 20 anos.
Ela estava em Maputo participando do 8º Congresso da Frelimo, partido ainda no poder no país, onde também dirige uma ONG voltada para crianças, a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC).
Graça Machel, que foi ministra da Educação e Cultura de Moçambique por dez anos, falou sobre o elevado índice de analfabetismo das mulheres moçambicanas (71%, chegando a 80% nas zonas rurais), sobre a epidemia de Aids e as perspectivas para o Nepad (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África). Ela acha que os recursos para o crescimento da África estão dentro do próprio continente -"o dinheiro dos ricos africanos, a sabedoria popular e o conhecimento já produzido pelas instituições científicas em parceira com os países desenvolvidos". (MF)

Folha - Que providências estão sendo tomadas contra a disseminação do HIV em Moçambique, inclusive entre crianças?
Graça Machel -
Moçambique só lançou o programa de prevenção e educação sobre Sida (Aids) muito recentemente. Há de haver, talvez, três anos. E por isso os efeitos e impactos não podem ser ainda recolhidos. Há estimativas de crianças que estão a nascer infectadas ou afetadas porque os pais ou um dos pais morrem devido à Sida. Mas nós não temos sequer estudos pormenorizados que possam dizer qual é a dimensão do problema. Essa é que é a tragédia nossa. A indicação mais próxima da realidade é o número de camas que estão sendo ocupadas em hospitais por doentes de Sida (50% dos leitos). Há várias organizações brasileiras que estão a trabalhar conosco, para colher a experiência do Brasil nos programas de educação e prevenção, incluindo a minha própria instituição, a FDC.

Folha - De que modo o Nepad pode ajudar a África?
Machel -
O Nepad é uma iniciativa que promete sucesso. Pela primeira vez, a África, quase que em uníssono, está a dizer a si própria: "nós temos que mudar os sistemas de governo para torná-los mais democráticos, combater a corrupção, aumentar os nossos próprios orçamentos para as áreas sociais". Estamos a falar em infra-estrutura, em uma agricultura mais moderna. Tudo isso são, primeiro que tudo, mensagens de todos os africanos para os africanos. E eu acho que isso é uma grande mudança. Pela primeira vez, nós estamos a falar com o mundo desenvolvido em termos de parceria e não em termos de ajuda.

Folha - Qual é a diferença?
Machel -
Não estamos aqui à espera de que os países desenvolvidos nos ajudem. Estamos a dizer que nós temos potencialidades, recursos, que queremos cooperar e queremos que eles transfiram conhecimento, tecnologias, mas para se juntarem aos africanos e trabalhar com eles num esforço de mútuos benefícios. Então, aqui, a equação de relacionamento com os países desenvolvidos é totalmente diferente. Mas eu não estou a dizer que tudo está rosado com o Nepad.

Folha - Por exemplo?
Machel -
É preciso fazer muito mais trabalho para convencer os próprios africanos de que há capacidade de mobilizar recursos no interior do continente. E, portanto, para um desenvolvimento ser sustentável, tem que se assentar em capacidade local. Não pode depender muito das parcerias que virão de fora. Os recursos para o arranque do desenvolvimento de África estão dentro do próprio continente.

Folha - Quais são esses recursos?
Machel -
Começa pelos recursos humanos. Apesar de sermos pobres, como se diz, há muito conhecimento nas pessoas. Não só a sabedoria popular, mas mesmo tecnologias. Por que as pessoas não morreram todas aqui? Porque alguma agricultura se está a fazer, e é baseada em tecnologias que as pessoas dominam. Se você trouxer equipamento e tecnologias muito sofisticadas e disser que é isso que vai mudar a agricultura, os camponeses africanos não vão poder sustentar isso. É preciso despertar os recursos humanos locais para eles terem consciência de si próprios e melhorarem a maneira como fazem as coisas. Mesmo em termos de recursos financeiros, nós somos pobres de uma maneira geral, mas há gente rica neste continente. E eles têm que aprender que é necessário investir em África e não investir nos Estados Unidos e na Europa só. Quem vai desenvolver os africanos são os africanos.

Folha - Por que um índice de analfabetismo tão alto entre as mulheres moçambicanas?
Machel -
As mulheres têm pouco acesso às instituições de educação e de formação. Quando nós chegamos à independência, as taxas de analfabetismo eram muito altas em todo o país. Começamos campanhas de alfabetização e educação de adultos que estavam a ter algum sucesso. Então houve a guerra e interrompeu-se tudo, em particular no campo, onde o impacto da guerra se fez sentir muito mais. Agora é que se está a refazer as redes de educação e de alfabetização de adultos. As mulheres até, por sinal, são muito mais entusiastas com a alfabetização do que os homens, quando o programa está perto de onde elas trabalham. É preciso colocar os centros de alfabetização perto delas. E isso é que tem sido o desafio dos organismos do Estado e das organizações não-governamentais.

Folha - Quais as prioridades sociais do país tiradas do 8º Congresso da Frelimo?
Machel -
A prioridade é mais ou menos equilibrada entre educação, saúde, agricultura. Mas nós precisamos produzir mais comida. Se as pessoas não comem, não podem estudar, nem podem ir ao hospital. Aliás, vão para o hospital porque não comem. Portanto é preciso atacar seriamente o problema da segurança alimentar. Mas, por outro lado, é verdade que educação, saúde e água, abastecimento de água, são muito importantes.



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