São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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PRESÍDIO TEMÁTICO

Ex-detentas de Schloss Hoheneck (antiga Alemanha Oriental) dizem que empresário zomba de seu sofrimento

Alemão converte prisão comunista em hotel

MARK LANDER
DO "NEW YORK TIMES", EM STOLLBERG

Há apenas três anos, as últimas prisioneiras deixaram Schloss Hoheneck, uma fortaleza sombria sobre um penhasco na aldeia de Stollberg (leste da Alemanha). Hoje o maior sonho de Bernhard Freiberger é lotar suas celas abandonadas com turistas pagantes.
Freiberger, investidor alemão ocidental cuja colorida gravata borboleta e o sorriso cintilante sugerem mais um negociante contumaz do que um diretor de penitenciária, em 2003 comprou a prisão feminina de 140 anos, atraído por sua reputação tenebrosa como local de detenção de prisioneiras políticas na era comunista.
Agora promove a oportunidade de passar uma noite como uma dissidente, dormindo em um catre duro, numa cela úmida, consumindo alimentos de péssima qualidade e desfrutando, como diz o site de Freiberger, "daquele irresistível sentimento de cadeia". O custo: 100 por pessoa, uniformes listrados não incluídos.
"É importante fazer com que as pessoas sintam o que ocorreu aqui", disse Freiberger, exibindo os horrores locais, como uma câmara escura subterrânea, onde as prisioneiras eram deixadas com água até a cintura por dias a fio. "É impossível compreender o que acontecia visitando um museu."
Se Freiberger, 44, conseguirá criar uma hospedaria à moda do Gulag nesse canto isolado da antiga Alemanha Oriental é uma incógnita. Ele diz que tem 800 reservas a partir de setembro.

Nostalgia do comunismo
A idéia de Freiberger provocou reações furiosas nas mulheres que estiveram presas em Hoheneck. Ainda que o empresário insista em que levará seu plano adiante, terminou por cancelar abruptamente o primeiro "fim de semana de cadeia", depois que um grupo de ex-prisioneiras políticas protestou publicamente.
Alugar celas em Hoheneck é um modo de trivializar a experiência a que foram submetidas, acusam as ex-presidiárias, e de transformar a história alemã depois da Segunda Guerra Mundial em um parque temático da Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental).
Para elas, a idéia é uma exploração crassa da nostalgia pelo leste comunista, alimentada pelo filme de Wolfgang Becker "Adeus, Lênin" (2003), que inspirou até planos de um parque sobre a Alemanha Oriental perto de Berlim.
"Ele está zombando do nosso sofrimento", diz Leni Köhler, 77, lendo em voz alta o site de Freiberger. "É como se a vida que tivemos lá tivesse sido maravilhosa".
Passados 50 anos de sua libertação, Köhler lembra com um arrepio os três anos em Hoheneck. Detida em 1950 pela força de ocupação soviética, acusada de ajudar soldados russos a escapar para a Alemanha Ocidental, Köhler foi forçada a dormir em um piso de concreto durante sua gravidez.
Condenada a 25 anos, foi transferida para Hoheneck, onde suas companheiras de cela eram criminosas barra-pesada. As prisioneiras políticas eram as menos influentes, o que tornava a vida uma luta diária. Debilitada pela imundície das celas e pela falta de comida, Köhler contraiu tuberculose.
Enquanto olhava para a prisão, originalmente construída como castelo, no século 13, Köhler apontou para uma torre e relembrou o dia em que subiu ao topo da construção, despistando os guardas. Olhando pela janela, conseguiu ver sua aldeia natal, a quilômetros dali. "Eu não sabia se conseguiria rever minha terra um dia", diz. "Tinha 25 anos e estava muito doente, enfrentando uma sentença de 25 anos de prisão."
Em 1954, Köhler foi libertada em uma anistia de prisioneiros políticos. Seu filho, nascido enquanto ela ainda estava presa, foi entregue à sua irmã, membro do Partido Comunista. A irmã se recusou a devolver o menino quando Köhler foi solta, e mãe e filho só se reuniram anos depois.

Balanço moral
Contando sua história em uma manhã ensolarada, na Alemanha unificada e pacífica dos dias de hoje, Köhler reconhece que o medo e o desespero daqueles dias pareciam muito distantes. E isso é parte do problema, acrescenta.
As vítimas da tirania comunista na Alemanha Oriental foram, em larga medida, esquecidas na euforia que se seguiu à reunificação, em 1990. No grande balanço moral que é a história moderna alemã, seu sofrimento é eclipsado pelo das vítimas do nazismo.
Annemarie Krause, amiga de Köhler e também detenta, concorda vigorosamente com a cabeça. Ela ressaltou o fato de que Freiberger jamais seria autorizado a transformar um campo de concentração nazista em hotel.
Krause, 72, foi detida pelos soviéticos em 1948 devido a um caso de amor clandestino com um soldado russo. Ela e o jovem estavam preparando a deserção para o Ocidente. Por pior que os soviéticos a tenham tratado, conta ela, os alemães orientais, que assumiram o controle do presídio em 1950, eram muito mais severos.
"Nós pensávamos que estávamos voltando ao controle de alemães, e que isso nos ajudaria", conta Krause. "Mas fomos tratadas como criminosas da mais baixa espécie. Teríamos caminhado de joelhos de volta para os russos se nos permitissem".
Krause e Köhler ajudaram a criar uma exposição sobre sua experiência, na biblioteca de Stollberg. Mas o prefeito da aldeia, Marcel Schmidt, diz que ela só atrai 400 visitantes por ano, a maioria moradores locais. Realizar sua ambição de transformar a cidade em centro turístico exigiria uma atração de maior impacto.

Comida mexicana
Críticos dizem que outros presídios da era comunista, como o de Bautzen, atraem milhares de visitantes com mostras sobre os maus-tratos praticados atrás de seus muros, sem cruzar o limite entre informação e "schadenfreude" (alegria pela desgraça alheia).
"Talvez não seja fantasiosa o bastante, mas não consigo imaginar que pessoas venham a um lugar como Hoheneck só para curtir uma emoção sombria como essa", diz Anne Kaminsky, diretora de uma fundação de pesquisa sobre a ditadura alemã oriental. "Para mim, isso é meio macabro."
Ela enviou uma carta a Freiberger, exigindo que ele abandone o plano. Também houve protestos de grupos de direitos humanos.
Os protestos irritaram Freiberger. Os finais de semana na prisão, diz ele, são apenas parte de um plano para transformar o complexo de 5,7 hectares em um centro de eventos culturais. Ele também planeja um hotel quatro estrelas e 200 leitos, garagem para carros de época e restaurante especializado, surpreendentemente, em cozinha texana-mexicana.
Freiberger não diz quanto pagou pela prisão ao Estado da Saxônia. Tampouco informa quanto pretende investir. Mas contratou um historiador para documentar a história do local e instalou um sistema de som para transmitir música assustadora para as celas desertas.
"As pessoas têm de entender: podemos divulgar a história dos crimes cometidos aqui", diz ele, olhando o tristonho pátio da prisão. "Como poderíamos fazer mais pelas vítimas de Hoheneck? Eu não consigo imaginar."


Tradução de Paulo Migliacci


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