São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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PÓS-GUERRA

Hamid Karzai deverá se eleger presidente do Afeganistão em outubro; milícias das Províncias desafiam seu poder

Cabul ainda luta para controlar território

DO "FINANCIAL TIMES", EM CABUL

Polido e animado, vestindo uma túnica branca e um colete cinzento, Hamid Karzai recebe efusivamente a visitante em seu escritório estritamente protegido e descreve o país que construiria se reeleito presidente do Afeganistão, em outubro: um Estado próspero, no qual o governo protege sua população.
A quase 600 quilômetros de distância, nas planícies escaldantes do oeste da Província de Herat, milícias rivais trocam disparos de granadas propelidas a foguete, em batalha pelo controle de um campo de pouso. Na vizinha Badhis, na noite anterior, combatentes leais a Ismail Khan, o despótico governador da Província, atacaram o quartel-general da polícia.
Mas Karzai se mantém otimista. Enviou uma delegação do governo à região e despachou 1.400 soldados do novo Exército Nacional Afegão, acompanhados por mais de uma dúzia de assessores militares americanos, com a missão de restaurar a ordem.


O governo dá mostras de mais vitalidade com as reformas em curso, porém milícias dos senhores da guerra desafiam plano dos EUA de criação de um Estado moderno


"O aeroporto foi atacado, mas podemos despachar tropas e retomá-lo em menos de 24 horas", diz. "Há dois anos e meio, não tínhamos essa capacidade."
Dado o tumulto que prevalece em muitas das regiões distantes do silencioso escritório de Karzai e da movimentada paz de Cabul, o otimismo que ele exibe é um tanto desconcertante. O presidente é o franco favorito para vencer a primeira eleição direta à presidência do Afeganistão, em 9 de outubro. O que é menos certo, porém, é sua capacidade para expandir sua esfera de governo a todos os cantos do país.
Quase três anos depois que um conselho de proeminentes afegãos selecionou Karzai como presidente interino, militantes islâmicos leais ao fanático regime do Taleban ou aos líderes paramilitares provinciais -os senhores da guerra- continuam a controlar boa parte do território.
O governo, as Nações Unidas -que estão ajudando a organizar as eleições- e os EUA apontam para os 10 milhões de eleitores registrados -número parcialmente inflado por pessoas que se registraram mais de uma vez- como sinal de que os afegãos estão prontos para ajudar a decidir quem governará seu país.
Em um esforço por manter a inquietação sob controle, a coalizão militar liderada pelos americanos, que vem caçando agentes da Al Qaeda e combatentes do Taleban no sul e no leste do país, reforçou seus efetivos para cerca de 18 mil soldados, ante os 11.500 homens no final do ano passado.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) concordou, sob pressão da ONU e de organizações não-governamentais, em expandir sua força de segurança, baseada em Cabul, de 6.500 para cerca de 10 mil soldados.

Descontrole territorial
Mas, no cinturão sul do país, região fronteiriça com o Paquistão, o controle por parte do governo continua a ser apenas teórico. A campanha violenta dos extremistas islâmicos paralisou a reconstrução e manteve as organizações assistenciais fora da região.
Mais de 30 trabalhadores dessas organizações foram mortos de janeiro para cá, e os mapas da ONU que mostram os níveis de risco de segurança no Afeganistão indicam que um terço do território do país é completamente inseguro.
Nas províncias do norte e do oeste, como Herat, indisciplinados exércitos informais continuam a manter o controle, perseguindo civis, lucrando com a indústria do ópio e se envolvendo em conflitos intranacionais cada vez mais freqüentes.
Um programa comandado pela ONU para o desarmamento dessas milícias vem colhendo insucesso após insucesso devido à resistência dos comandantes, os mais renitentes dos quais são os ligados ao marechal Mohammad Fahim, ministro da Defesa, que supostamente comanda a campanha nacional de desarmamento.
Após meses de negociações e de pressão internacional, a ONU desarmou cerca de 13 mil combatentes, o que representa de um terço a um quarto das forças irregulares, segundo estimativas.
Em jantar com carneiro assado e melões doces, em seus bem tratados jardins na cidade de Konduz (norte), capital da Província homônima, o general Mohammad Daoud, comandante militar das quatro Províncias setentrionais afegãs, demonstrava polido desdém pelo poder de Karzai.
"O governo é fraco. Não foi capaz de resolver a situação em Ghor ou Faryab", disse ele, em referência a levantes nas duas Províncias, que causaram a derrubada dos governadores indicados por Cabul. O general não cumpriu até agora os planos que previam o desarmamento de um terço de seus nove mil soldados.

Força militar renovada
Mas há alguns motivos para o otimismo de Karzai. O Exército Nacional Afegão continua a ser minúsculo diante das forças irregulares que se espalham pelo país, porém seus soldados uniformizados com esmero se tornaram um símbolo do poder centralizado.
O alto índice de deserção que prejudicava suas unidades nos primeiros dias se reduziu, e a força cresceu até se transformar em um exército treinado e etnicamente diversificado, que conta com cerca de 13 mil homens.
As unidades do Exército Nacional vêm sendo despachadas de Cabul para conter os combates entre grupos de milícias rivais nas Províncias. Os batalhões que compõem a força serão estacionados em sete centros regionais nas semanas que precedem a eleição e durante a coleta das urnas nas regiões mais remotas.
Mas a avaliação positiva de Karzai sobre Herat se provou prematura: no final, não foi o Exército Nacional, mas Zalmay Khalilzad, o embaixador americano, e uma demonstração de força de caças dos EUA que convenceram as facções a suspender o combate.
A presença de assessores militares americanos no Exército Nacional propicia à jovem força militar algum poderio adicional.
Na Província de Mainama, em maio, uma unidade do Exército Nacional que incluía oficiais norte-americanos chegou perto de entrar em combate com soldados leais ao general Abdul Rashid Dostum, um importante líder militar que está concorrendo à Presidência. "Nós instruímos jatos militares americanos a sobrevoar a casa de Dostum, para assegurar que ele compreendesse que não toleraríamos esse tipo de atitude", disse Khalilzad.
O Ministério do Interior, com a ajuda de assessores americanos e alemães, está treinando recrutas para a polícia e retreinando os policiais existentes. As forças policiais afegãs já contam com 23 mil homens. O programa, que envolve muitos recrutas analfabetos e muitas vezes lhes oferece só duas semanas de treinamento, foi criticado por observadores ocidentais como um exercício fútil, cujo objetivo é apenas o de cumprir as metas fixadas para o crescimento da polícia antes das eleições. Ali Jalali, o ministro do Interior, diz que o esquema é uma solução de compromisso entre o ideal e a necessidade de ter policiais mais treinados para as eleições.
Para Andrew Wilder, diretor da Unidade de Pesquisa e Avaliação do Afeganistão, uma organização de pesquisa sediada em Cabul, o Exército Nacional é um exemplo da necessidade de prazos mais longos, em lugar de soluções rápidas como as adotadas para a polícia. "O Exército está atrasado com relação ao cronograma oficial, mas pelo menos se sabe que um dia cumprirá os planos para sua expansão."
Em meio ao caos e à violência, os débeis contornos de um Estado começam a emergir na forma de instituições que exercerão controle físico e fiscal sobre o país, com sua colcha de retalhos de montanhas e zonas áridas.

No quilômetro três
Khalilzad, que chegou a Cabul em novembro com a missão de comandar os esforços norte-americanos para reanimar o processo de reconstrução, visto como pouco inspirado, compara a construção de um Estado no Afeganistão à construção de uma estrada. "Se temos uma estrada de dez quilômetros a construir, provavelmente estamos por volta do quilômetro três, agora", diz.
Na mesma rua do palácio presidencial de Karzai, em um ensolarado escritório no departamento de arrecadação tributária do Ministério das Finanças, Jelani Popal, vice-ministro das Finanças, trata de outro aspecto da batalha para impor um controle centralizado ao país: a disputa entre o frágil poder central e os homens fortes das Províncias.
"Nós estamos enfrentando todos os líderes paramilitares provinciais", diz Popal, um homem jovial mas determinado que comandava a maior ONG do Afeganistão antes de começar a trabalhar no ministério. "No ano passado, nossa arrecadação cresceu em mais de 5 bilhões de afghanis (US$ 100 milhões). Esse dinheiro sai diretamente dos bolsos deles."
O ministério reformou o corrupto e ineficiente sistema alfandegário afegão, cortou a burocracia e elevou os salários dos funcionários, sob um programa de reforma do serviço público que permite que os ministérios demitam funcionários a fim de pagar salários mais altos aos remanescentes.
Pela primeira vez em décadas, o governo impôs novos tributos. A base tributária é minúscula. Apenas cerca de 20 mil pessoas devem pagar imposto de renda no Afeganistão este ano, e a receita total do governo em 2004 cobrirá apenas metade do orçamento operacional de US$ 609 milhões, mas Popal insiste em que a imposição de tributos transmite a mensagem correta à população. "O governo precisa demonstrar que está cada vez mais no controle do país. As pessoas comuns querem ver impostos sendo recolhidos, em lugar de ver o dinheiro indo para os bolsos dos líderes de milícias."

Reconstrução demorada
Os esforços para impor controle fiscal são cansativos. Ismail Khan, governador de Herat, recolhe milhões de dólares a cada ano em tarifas alfandegárias e cobrando taxas extra-oficiais por travessias da fronteira iraniana, diz Popal.
Os governadores provinciais, insatisfeitos, apontam para a falta de esforços de reconstrução como motivos para a retenção de fundos. "Eles se queixam de que o governo central está tirando todo o seu dinheiro, e não lhes envia nada", diz Nargis Nehan, uma jovem durona que comanda o Departamento do Tesouro do governo afegão.
No acidentado e belo vale de Panjshir, cerca de 100 quilômetros a noroeste da capital, existem poucos sinais de desenvolvimento. Não há eletricidade, e a estrada é uma faixa de terra esburacada e poeirenta. A maior parte das novas construções são casas de campo construídas pelos líderes da população local, que desempenharam papel chave na derrubada do Taleban e foram recompensados com cargos no governo.
"Precisamos construir todas as instituições, a polícia, o Exército", diz Jalali. "Até que essas instituições estejam construídas e a sociedade civil possa se desenvolver, precisaremos de uma presença internacional. Sem ela, não creio que o processo de construção de um Estado tenha chance real de obter sucesso."
Conscientes do preço que estão pagando por terem abandonado o país depois da retirada soviética, em 1989, os aliados do Afeganistão começam a compreender que o processo de construção nacional não será rápido e tampouco sairá barato. Os doadores externos prometeram US$ 8,2 bilhões em novas verbas de assistência durante uma conferência em Berlim, em março, além dos US$ 5,2 bilhões oferecidos em Tóquio, depois da queda do Taleban. Com US$ 1,7 bilhão prometido em Berlim, serão de longe o mais importante país doador.
A Usaid, agência de apoio ao desenvolvimento do governo norte-americano, gastará US$ 1,2 bilhão este ano em projetos que vão da construção de estradas e escolas ao treinamento de professores, passando pela assessoria para as reformas financeiras.
Os funcionários reformistas do governo e os aliados políticos de Karzai, bem como muitos diplomatas estrangeiros, estão ansiosos pelo cumprimento das promessas de reforma feitas pelo presidente, entre as quais as promessas de enxugar o ministério e reestruturar o funcionalismo.
Karzai impressionou até mesmo os mais céticos, em julho, com sua surpreendente decisão de excluir Fahim, que muitos consideravam como escolha certa para o cargo de vice-presidente, de sua chapa para as próximas eleições.
Outras decisões recentes, como a concessão de novos e atraentes cargos aos comandantes de milícias mais recalcitrantes, não reforçaram da mesma maneira a confiança no compromisso de Karzai para com as reformas.
Nos ordeiros limites de seu escritório, o presidente parece confiante em sua capacidade de concretizar os planos de Estado delineados na nova carta do país. "A constituição fala de instituições de governo, o Parlamento, o Judiciário, o serviço civil".
Até que o país possa confiar nessas instituições, é preciso que dependa das pessoas que sobreviveram a mais de duas décadas de guerra civil e retornaram na maior reversão de um êxodo de refugiados na história: cerca de 3 milhões optaram por voltar ao Afeganistão nos últimos anos, para ajudar a reconstruir o país.
"Se não tivéssemos o tipo de povo que temos, o país teria sido destruído. Se ainda estamos aqui é porque somos uma nação sólida", afirma o presidente.

Tradução de Paulo Migliacci


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