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AMÉRICA LATINA
Em entrevista à Folha, o dissidente exorta Lula a falar com todos os setores da sociedade da ilha, não só com Fidel
Brasil pode ajudar Cuba a mudar, diz Payá
Cristobal Herrera -14.set.2003/Associated Press
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O ditador cubano, Fidel Castro, faz pausa durante discurso na praça da Revolução, em Havana |
DA REDAÇÃO
Às vésperas da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a
Cuba, na próxima sexta-feira, Oswaldo Payá, um dos principais
dissidentes do regime de Fidel
Castro, afirmou que, se o Brasil
quiser auxiliar os cubanos, "terá
de ajudar Cuba a mudar de regime, não apoiando seus atuais líderes". Lula é amigo de Fidel.
"Exortamos o presidente Lula a
entrar em contato não apenas
com o governo cubano, mas com
todas as partes envolvidas no processo político do país", disse Payá
em entrevista à Folha.
Ele afirmou que, apesar do discurso socialista, as elites política e
militar de Cuba têm direito à riqueza e ao luxo, enquanto a população da ilha enfrenta a pobreza,
razão pela qual "a maioria do povo cubano quer mudanças".
Líder do Movimento Cristão de
Libertação e do Projeto Varela pela democratização do país, ele pede um referendo sobre direitos
humanos e reformas eleitorais.
Payá afirma que sua iniciativa é
"uma campanha realizada em
meio ao totalitarismo, em uma
cultura do medo", cujo objetivo
não é "tomar o poder", mas deflagrar "um processo endógeno de
transformação e de libertação,
um convite ao diálogo".
Nascido em 1952, Payá, católico
fervoroso, passou três anos num
campo de trabalhos forçados por
opor-se à invasão soviética da então Tchecoslováquia, ação apoiada por Fidel. Leia a seguir trechos
de sua entrevista, por telefone, à
Folha.
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)
Folha - Qual é a situação atual do
Projeto Varela?
Oswaldo Payá - Estamos dando
sequência a nosso trabalho apesar
das dificuldades. Quando começamos a recolher as assinaturas
para pedir o referendo, passamos
a ser perseguidos pelo serviço de
segurança do Estado, apesar de a
nossa iniciativa ser legal. Nossos
amigos que realizavam a coleta
das assinaturas foram ameaçados
ou detidos sem motivo aparente.
O serviço de segurança os sequestrava em plena rua, transportava-os por dezenas de quilômetros e soltava-os no meio de uma
estrada, por exemplo.
Conseguimos 11 mil assinaturas
[mais que o exigido pela Constituição para pedir um referendo] e
enviamos o documento ao governo. Entretanto fomos atacados
pelas autoridades, que disseram
que os EUA estavam por trás do
projeto. Também fomos atacados
por parte da comunidade cubano-americana de Miami, que não
concordava com uma iniciativa
que visa realizar uma transformação endógena em Cuba.
Entregamos as assinaturas e
criamos comitês de cidadania para continuar a campanha. Em seguida, o governo mudou a Constituição, mas os artigos a que se
refere o Projeto Varela ainda existem, permitindo que continuemos a lutar por nossos objetivos.
Folha - Contudo, em termos práticos, é possível dar continuidade a
essa iniciativa?
Payá - Continuamos a coletar
assinaturas, porém não queremos
dizer quantas temos no momento. Temos milhares de novas assinaturas e comitês de cidadania
em todo o país. No entanto a repressão ficou ainda maior. Depois
da detenção de nossos companheiros no primeiro semestre, 85
ao todo desde janeiro -mais de
50 que trabalhavam com o Projeto Varela-, o serviço de segurança enviou agentes à casa das pessoas que assinaram o texto.
Esses agentes, que, aliás, estão
escutando e gravando nossa conversa, diziam que defendiam o
projeto e que tinham sido enviados por mim. Todavia tinham atitudes grotescas, afirmando que
estavam lá para pagar pela assinatura do texto. Isso para tirar a legitimidade de nosso esforço.
Folha - Se o Projeto Varela não tiver sucesso, como ocorrerá a transição? Só após a morte de Fidel?
Payá - Não. Trabalhamos para
que o povo de Cuba seja o protagonista da mudança sem esperar
a morte de Fidel. Sei que o que direi agora incomodará muita gente, pois ainda há um esforço para
ter uma imagem positiva de Cuba
em várias partes do planeta, mas
devo fazê-lo: Cuba é um país de
poucos ricos e de muitos pobres.
Há muitos anos, as pessoas que
têm muito poder político ou militar e seus familiares são os chamados "novos ricos" da ilha. Eles viajam ao exterior, têm dinheiro de
sobra, palácios, carros modernos.
Contudo a maioria do povo cubano quer mudanças. A marginalidade vem crescendo, os pontos
positivos e as realizações do regime estão se deteriorando, e as
pessoas de boa-fé, que confiavam
no sistema, sentem-se hoje bastante decepcionadas. Assim, há
uma contradição e um distanciamento muito grandes entre o governo e o povo. Mas a maioria das
pessoas, incluindo militares e funcionários públicos, querem uma
mudança pacífica.
Folha - Como os outros países, sobretudo o Brasil, podem ajudar a
população cubana?
Payá - Se quiser ajudar os cubanos, o Brasil terá de ajudar Cuba a
mudar de regime, não apoiando
seus atuais líderes. Afinal, se
apoiar o regime atual, o governo
brasileiro estará contribuindo para agravar as diferenças.
Nós, os oposicionistas cubanos,
exortamos o presidente Lula, os
partidos políticos e as instituições
do Brasil a entrar em contato não
apenas com o governo cubano,
mas com todas as partes envolvidas no processo político do país.
Pedimos também que eles falem
com representantes da sociedade
civil, de nosso movimento e de
outros grupos. Se isso não ocorrer, eles não terão uma verdadeira
idéia da situação cubana.
O Brasil deveria defender a
abertura de um diálogo entre o
governo e a oposição em Cuba e
exigir a libertação dos prisioneiros políticos do país, que estão
presos em jaulas, vivendo num
ambiente terrível.
Falo a todos aqueles que querem escutar o que digo. Falo de
cardeais e de sacerdotes brasileiros, cujos testemunhos inspiravam nossa luta, pois defendiam o
uso da espiritualidade nos momentos de perseguição. Falo de
pessoas como Frei Betto. Ele escreveu maravilhosamente sobre o
direito à libertação, mas apóia hoje o regime oligárquico cubano.
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