São Paulo, quinta, 22 de janeiro de 1998.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FRENTE A FRENTE
Em reunião de hoje, papa faz última ofensiva diplomática, e Fidel luta para garantir seu lugar na história
Encontro pode definir transição em Cuba

Exilada revê a mãe após obter permissão para ver o papa em Cuba Cubano segura cartaz do papa ao lado de bandeira com foto do Che

Fidel percebeu que o papa era o único poder capaz de garantir salvação para ele e Cuba
TAD SZULC



Quando João Paulo 2º e Fidel Castro se reunirem em Havana, a história com certeza vai registrar o fato como um dos acontecimentos internacionais mais dramáticos, surpreendentes e significativos desde o final da Segunda Guerra Mundial.
É bem possível que o futuro político cubano a longo prazo e, em última análise, o próprio destino de Cuba e seus 11 milhões de habitantes sejam definidos nas conversações entre Wojtyla e Castro. É uma realidade que os dois homens estão inteiramente preparados para aceitar, segundo crescentes indicativos vindos de ambos os lados. O papa e Fidel já tiveram um encontro -no Vaticano, em novembro de 1996- que deitou as bases para o encontro em Havana.
Tendo tido o privilégio de conhecer tanto João Paulo 2º como Fidel e ter conversado com cada um deles sobre política e praticamente todos os outros assuntos possíveis, estou convencido de que, após cinco anos de negociações, em sua maioria sigilosas, realizadas por meio de emissários, eles chegaram à conclusão de que devem colaborar para assegurar uma transição pacífica em Cuba após a era de Fidel.
Para o papa, Cuba talvez seja o último grande empreendimento político e diplomático de mediação ideológica. Para Fidel, esta talvez seja a última oportunidade de tentar garantir que a evolução de Cuba, depois dele, preserve as conquistas de justiça social da revolução social que ele lançou em 1959. Fidel sempre foi obcecado por seu "lugar na história", e é possível que, na atual situação, essa seja sua maior preocupação.
Mas para entender o processo é crucial guardar em mente as semelhanças existentes entre os dois homens.
Ambos são altamente pragmáticos e práticos. Pode-se discutir filosofia, por exemplo, tão bem com Fidel quanto com Wojtyla. Ambos possuem um senso de história e uma visão histórica, sempre pensando em termos de longo prazo. Ambos são capazes de chegar, sozinhos, a decisões grandiosas e muitas vezes cercadas de controvérsia; no momento de decidir, dependem pouco de assessores, e ambos são irredutivelmente teimosos. E, é claro, ambos são magnificamente diretos e francos quando o espírito -e o sentimento de indignação- os move.
João Paulo 2º e Fidel Castro são ambos filhos de países pequenos que por muitos anos sofreram às mãos de ocupações estrangeiras e, consequentemente, ambos são nacionalistas de maneira tradicional. Boa parte do chamado "fidelismo" é mais um nacionalismo cubano que Fidel soube atrelar do que marxismo-leninismo, apesar da retórica de Havana. Um senso comum de justiça social constitui mais uma dimensão da interação entre as duas personalidades.
Assim, não deve surpreender que Fidel Castro, que estudou num colégio jesuíta, tenha este papa em alta estima. No livro "Fidel e a Religião", elogiou João Paulo 2º por sua defesa da terra para os camponeses sem-terra. Repetidas vezes lhe escreveu longas cartas (não sabemos se o papa as respondeu). Pelas conversas que tive com Fidel, tive a impressão clara de que a figura do papa o fascina -e que, à sua própria maneira muito particular, continua ligado à religião.
Um dos dons pessoais e políticos de Fidel é sua capacidade de adaptar-se às circunstâncias em transformação. Acredito que Fidel decidiu voltar-se a João Paulo 2º para buscar um relacionamento de intercâmbio entre os dois depois da queda da União Soviética e do fim repentino do maciço e essencial apoio político, econômico e militar que Moscou dava a seu regime.
Assim, as conversações particulares entre emissários do Vaticano e de Fidel tiveram início no final de 1992, quando Fidel percebeu que João Paulo 2º era o único poder no mundo -espiritual além de político- capaz de garantir algum tipo de salvação para ele e Cuba. Compreendeu que, ao vir a Cuba, o papa o legitimaria em seu país e no exterior enquanto líder aceitável de seu país, e não o pária que os EUA o retratam como sendo.
Um fator importante que levou Fidel a correr o risco da visita papal -pois é concebível que ela possa alimentar sentimentos antifidelistas na ilha ou até mesmo desencadear um levante- foi sem dúvida alguma a firme oposição pública expressa pelo Vaticano a todas as formas de sanções econômicas impostas por um país a outro.
Até agora, no entanto, não há indícios de que Clinton pretenda repensar sua política para Cuba.
Paralelamente às suas negociações com os enviados do Vaticano, Fidel tomou diversas medidas em prol da Igreja Católica na ilha, ciente de que o papa não visitaria um país onde a igreja estivesse marginalizada e reprimida.
Mas, sobretudo, João Paulo 2º concluiu que Fidel finalmente está preparado para tolerar algumas concessões políticas em Cuba; sem tal compromisso de longo prazo, a viagem do papa não faria sentido.
A intenção do papa é ajudar a criar um clima favorável em Cuba, como ele fez na Polônia dez anos atrás, para que se evite derramamento de sangue na hora da transição, quanto menos guerra civil.
A expressão chave que vem sendo usada por João Paulo 2º e o cardeal Ortega desde o ano passado é "a reconciliação de todos os cubanos", e, em seu discurso de 1º de janeiro aos diplomatas, o papa disse que espera ajudar Cuba a tornar-se um lugar "onde todos os indivíduos possam encontrar seu lugar de direito e ver suas legítimas aspirações reconhecidas".
"Reconciliação" significa paz entre Havana e os exilados cubanos, especialmente os que vivem nos EUA, e João Paulo 2º se firmou como promotor da paz, um papel que evidentemente agrada Fidel.
A presença do papa em Cuba, seguindo o exemplo de sua primeira viagem à Polônia, tem a intenção de promover a negociação, não o confronto. Seu objetivo não é ajudar a derrubar Fidel, mas promover um diálogo com o regime -e entre os cubanos de postura política oposta- que seja capaz de levar a uma transição pacífica.
Presume-se, no Vaticano, que Fidel não vai renegar as concessões que fez à igreja cubana, depois que o papa for embora. É pouco provável que Fidel crie constrangimentos para João Paulo 2º, e ações regressivas seriam capazes de desencadear protestos em massa no país.
Entre os cenários possíveis para Cuba figura a possibilidade de que as negociações em Havana possam até abrir caminho para o surgimento de um movimento democrata cristão, apoiado pela igreja, que incentivaria o advento de algumas liberdades na ilha, ao mesmo tempo em que reduziria o perigo da violência por parte dos cubanos anticastristas, quando o "Líder Máximo" desaparecer.
João Paulo 2º encoraja os movimentos democratas cristãos centristas na Europa oriental a refrear o "capitalismo desenfreado" e os extremistas de direita, e a impressão dominante no Vaticano é que essa seria uma barganha aceitável para Fidel, especialmente se ele puder alegar que foi idéia sua.
É impossível prever o que o papa e Fidel poderão decidir em seu encontro reservado no Palácio da Revolução, hoje. Mas, dada sua notável argúcia política, nem o papa nem Fidel teriam embarcado num espetáculo dessas proporções -sob os holofotes da TV mundial, ao vivo- se não pensassem que ele levaria a resultados práticos.
Wojtyla e Fidel Castro sempre foram ousados e assumiram riscos. Desta vez, a aposta conjunta poderá gerar um acontecimento histórico memorável.


Tad Szulc, jornalista polonês naturalizado norte-americano, é autor de 17 livros, entre eles "João Paulo 2º - A Biografia" (1995) e "Fidel Castro - Um Retrato Crítico" (1986). Foi editor e correspondente do "The New York Times" em quatro continentes e atuou no Brasil de 55 a 61.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.