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MEMÓRIA
Aos 96, antropólogo francês, um dos maiores intelectuais do século 20, reflete sobre sua experiência brasileira nos anos 1930
"Devo a carreira ao Brasil", diz Lévi-Strauss
VÉRONIQUE MORTAIGNE
DO ""LE MONDE"
Na véspera das comemorações
do Ano do Brasil na França, o antropólogo Claude Lévi-Strauss,
96, autor de ""Tristes Trópicos",
fala de sua relação com o Brasil,
onde deu seus primeiros passos
como etnólogo. Hoje, afirma, a civilização em escala mundial pôs
fim a esse tipo de descoberta.
![](http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Pergunta - A ligação entre a França e o Brasil é muito antiga?
Lévi-Strauss - Este Ano do Brasil
na França acontece quase exatamente 500 anos após o primeiro
contato entre a França e o Brasil,
na ocasião da viagem do normando Paulmier de Gonneville. Em
1504 ele chegou à costa sul do Brasil, quatro anos apenas após a chegada de Pedro Álvares Cabral. Assim, os testemunhos mais antigos
que temos sobre o Brasil datam
do século 16 e são franceses.
Em 1955 houve a tentativa do almirante Villegaignon de estabelecer uma França Antártica, descrita por André Thevet em sua grande obra ""Les Singularitez de la
France Antarctique" (publicada
em 1557). Em 1578, Jean de Léry
lança ""Histoire d'un voyage faict
en la terre du Brésil" [história de
uma viagem feita na terra do Brasil]. No século 17, mais ao norte,
ocorrem tentativas de instalação
de missionários. Mais tarde, no
século 18 e início do século 19,
quando o Brasil se torna império,
observa-se a presença de pintores
franceses (a missão artística enviada a partir de 1815 por Luís 18,
da qual fazia parte Jean-Baptiste
Debret), que nos deixaram muitas
ilustrações sobre a vida no Rio de
Janeiro e no interior do país.
Houve conflitos entre a França e
o Brasil, por exemplo em torno
dos territórios que faziam fronteira com a Guiana Francesa, reivindicados pelos dois países. Mas a
fundação da USP, no século 20,
permitiu a retomada de contatos
muito estreitos.
Pergunta - Foi na USP que o sr. foi
ensinar sociologia, em 1935. O que
significa o Brasil hoje para o sr.?
Lévi-Strauss - O Brasil representa
a experiência mais importante de
minha vida, ao mesmo tempo pela distância e pelo contraste, mas
também porque foi ela que determinou minha carreira. Tenho
uma dívida muito profunda com
esse país. Isso dito, deixei o Brasil
no início de 1939 e só retornei
muito brevemente em 1985,
quando acompanhei o presidente
Mitterrand em uma visita de cinco dias. Embora tenha sido muito
curta, essa estadia provocou em
mim uma verdadeira revolução
mental. O Brasil se tornara um
país total e inteiramente outro.
A São Paulo que eu conhecera
numa época em que a cidade acabara de completar 1 milhão de habitantes já tinha mais de 10 milhões. Os traços da época colonial
haviam desaparecido. São Paulo
se tornara uma cidade espantosa
e assustadora, pontilhada por
quilômetros de arranha-céus, a tal
ponto que, querendo rever não a
casa na qual morara -com certeza ela já não existia-, mas a rua
onde vivi por alguns anos, passei a
manhã parado num engarrafamento, sem conseguir chegar.
Pergunta - A urbanização de São
Paulo fez a natureza desaparecer;
o rio Tietê, que foi fundamental na
conquista do interior do Brasil a
partir de São Paulo, está moribundo. Essa quebra das ligações entre
homem e natureza não é uma característica de nossa época?
Lévi-Strauss - Mesmo em meu
tempo, a natureza já havia mudado muito em São Paulo. Houve a
época do café, e as áreas em torno
da cidade foram dedicadas a essa
indústria agroalimentar. Dessa
natureza tão forte, porém, sobreviviam as encostas da serra do
Mar, entre São Paulo e o porto de
Santos. Ali, num trecho de alguns
quilômetros, ocorria um desnível
de 800 metros, tão abrupto que a
civilização desdenhara o lugar,
deixando-o entregue à mata virgem. Assim, quando se desembarcava em Santos para subir para São Paulo, tinha-se um contato
breve, mas imediato, com aquilo
que o Brasil do interior, a milhares de quilômetros de distância,
ainda podia reservar.
A ligação entre homem e natureza talvez tenha se rompido e, ao
mesmo tempo, podemos compreender que o Brasil, que se desenvolveu de modo tão considerável, mantenha com a natureza a
mesma política que teve a Europa
na Idade Média: destruir a natureza para instalar a agricultura.
Pergunta - É possível ser marcado
por um país fisicamente e para
sempre?
Lévi-Strauss - Com certeza que
sim. O primeiro choque que senti
ao chegar ao Brasil foi a natureza,
como ainda se podia vê-la nas encostas da serra do Mar; depois,
quando me meti pelo interior, foi
novamente uma natureza tão totalmente diferente daquela que eu
conhecera. Mas existe também
outra dimensão à qual não se dá
atenção sempre e que, para mim,
foi de importância fundamental: a
do fenômeno urbano.
Quando cheguei a São Paulo, dizia-se que uma casa por hora era
erguida na cidade. Nessa época
existia uma empresa britânica
que havia apenas quatro ou cinco
anos vinha abrindo territórios no
oeste do Estado de São Paulo. A
cada 15 quilômetros ela construía
uma linha de estrada de ferro e
desenvolvia uma cidade. Na primeira, a mais antiga, havia 15 mil
habitantes, na segunda, 5.000, na
terceira, mil, depois 90, depois 40
e, na mais recente, apenas um
-por sinal, francês.
Nessa época, um dos grandes
privilégios do Brasil era poder assistir, de maneira quase experimental, à formação desse fantástico fenômeno humano que é uma
cidade. Na França, a cidade às vezes é fruto de uma decisão do Estado, é verdade, mas é sobretudo
resultado de milhões de pequenas
iniciativas individuais tomadas ao
longo de séculos. No Brasil dos
anos 1930, era possível observar
esse processo, acelerado, se produzir em questão de alguns anos.
É claro, também porque eu praticava a etnografia, os índios foram essenciais para mim, mas essa experiência urbana teve uma
importância muito grande, e os
dois brasis conviviam, embora a
boa distância um do outro.
Quando fui a Mato Grosso pela
primeira vez, Brasília ainda não
existia, mas houvera uma tentativa de criar uma cidade a partir do
nada, Goiânia, que não vingara. O
planalto central é magnífico
-nele, o céu assume toda sua importância devida. É uma outra ordem de grandeza. Escritores como Euclides da Cunha (1866-1909), autor de "Os Sertões", fizeram descrições magníficas desse
Brasil. Também conheci bem Mário de Andrade (1893-1945): ele
dirigia a Secretaria da Cultura da
cidade de São Paulo. Nós nos tornamos muito próximos. ""Macunaíma" é um grande livro.
Pergunta - Mário de Andrade
imaginou, com muito humor, Macunaíma, um índio da Amazônia,
mentiroso e preguiçoso, que, pelo
casamento, se tornou imperador
da floresta; ele desembarca em São
Paulo em busca de um amuleto, antes de ser transformado em constelação, a Ursa Maior. Esse espírito
indígena, essa ligação entre cidade, floresta e mito, ainda existe? O
sr. acompanhou sua evolução?
Lévi-Strauss - Acompanho regularmente a evolução dos indígenas que estudei na época, pelo
pensamento e através de meus colegas bem mais jovens do que eu,
especialmente os da Universidade
de Cuiabá, que trabalham com os
nhambiquaras, entre outros. Eles
me escrevem e me enviam seus
trabalhos regularmente. Esses povos passaram por provações terríveis. Foram mais ou menos exterminados, a tal ponto que apenas
entre 5% e 10% das populações
originais haviam sobrevivido.
Mas o que está acontecendo hoje
é de interesse imenso. Esses povos
tomaram contato uns com os outros. Agora eles já sabem aquilo
que durante tempo desconheceram: que não estão sozinhos no
palco do universo. Na Nova Zelândia, na Austrália ou na Melanésia há pessoas que, em épocas
diferentes, passaram pelas mesmas provações que eles. Assim,
eles tomam consciência de sua
posição comum no mundo.
Portanto, é claro que a etnografia nunca mais será aquela que eu
pratiquei em meu tempo, quando
se tratava de encontrar testemunhos de crenças, formações sociais e instituições nascidas em total isolamento com relação às
nossas e, portanto, que constituíam contribuições insubstituíveis para o patrimônio da humanidade. Hoje, posso afirmar que
vivemos num regime de ""compenetração mútua". Estamos andando em direção a uma civilização em escala mundial. É uma civilização na qual é provável que
apareçam diferenças -é isso, pelo menos, que devemos esperar.
Mas essas diferenças não serão
mais da mesma natureza: elas serão internas, não mais externas.
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