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"Plano dos EUA pode levar à guerra civil palestina"
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM BEIRUTE
Hussein Malla - 18.jun.2002/Associated Press
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Hassan Nasrallah, líder máximo do grupo extremista islâmico libanês Hizbollah, profere um discurso sobre Israel em Beirute |
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o secretário-geral do Hizbollah, Hassan
Nasrallah, concedeu à Folha em
Beirute, no último dia 10.
(PS)
Folha - O que o sr. acha do plano
que foi proposto pelos EUA para a
retomada do processo de paz israelo-palestino?
Hassan Nasrallah - Acreditamos
que a intenção do plano seja liquidar a Intifada palestina [revolta
popular contra a ocupação israelense] e, como os grupos palestinos, temos nossas reservas.
A proposta exige que o governo
palestino e a resistência se desarmem, protegendo a ocupação israelense, os assentamentos e os
soldados israelenses, e isso pode
levar a uma guerra civil na Palestina.
Os palestinos e israelenses vão
se sentar à mesa de negociação e
vão discutir questões que Sharon
[o premiê israelense] já declarou
serem inegociáveis, como o direito de retorno dos refugiados palestinos, o fim definitivo dos assentamentos e a insistência de
considerar Jerusalém como capital unicamente de Israel. Portanto, mesmo que a proposta dos
EUA proponha um caminho para
a negociação, ela vem com impedimentos decisivos.
Folha - Então o sr. concorda com a
posição do Hamas [grupo terrorista
palestino] de não aceitar discutir o
plano?
Nasrallah - Nós apoiamos o diálogo tanto entre os grupos palestinos como entre os grupos palestinos e a Autoridade Nacional Palestina. É claro que a recente posição do Hamas foi uma reação direta ao discurso de Abu Mazen
[premiê palestino] em Ácaba [cidade jordaniana onde os premiês
israelense e palestino se reuniram,
com a presença do presidente
George W. Bush, e aceitaram retomar o processo de paz tendo como base o plano proposto pelos
EUA]. Mazen se encontrou com o
Hamas antes de ir a Ácaba, criou
toda uma expectativa positiva sobre a sua posição em relação ao
plano dos EUA, mas depois o discurso ficou diferente. Isso fez com
que o Hamas se sentisse como se
tivesse sido esfaqueado pelas costas, insultado.
Folha - Existe alguma chance de o
Hizbollah algum dia aceitar o Estado de Israel?
Nasrallah - Antes de 1948 não
havia nenhum Estado com esse
nome. Havia a Palestina e o povo
da Palestina, que incluía cristãos,
muçulmanos e judeus. Eles coexistiram por centenas de anos em
paz. Daí veio o movimento sionista e organizou grupos terroristas
do mundo inteiro. Eles começaram a agir intimidando os palestinos e os expulsando da sua própria terra. Portanto, nós consideramos tal Estado ilegítimo, ilegal.
Ele foi estabelecido usurpando a
terra de outros.
Mas isso pertence ao passado. O
que nós esperamos, no futuro, é a
solução do problema. Defendemos a existência de um só país,
que vá do mar Mediterrâneo até o
rio Jordão, e que inclua muçulmanos, cristãos e judeus. Que seja
um Estado democrático, em que a
maioria da população possa escolher o tipo de governo que desejar, seja ele religioso ou secular,
mas democrático.
Folha - O Hizbollah aceitaria se
desarmar em troca de U$ 500 milhões, como foi sugerido pelo deputado americano de origem libanesa Darrel Issa?
Nasrallah - Nós vemos essa proposta como um insulto. A resistência, as armas da resistência e a
força de vontade da resistência
não podem ser medidas nem
substituídos com dinheiro. A resistência é uma reação à invasão
do Líbano e às suas repercussões:
a ocupação, os prisioneiros, a destruição da infra-estrutura, centenas de milhares de mártires e feridos, centenas de milhares de refugiados. Qualquer solução que se
queira dar à resistência tem de envolver a remoção das razões que
levaram a isso, não há solução
através de dinheiro. Existem muitas famílias que ofereceram seus
filhos como mártires na resistência. Eu sou um deles. Dá para eu
aceitar vender meu filho martirizado ao sr. Darrel Issa por US$
500 milhões?
Folha - O sr. disse, em um de seus
discursos, que, no Líbano, "nós temos orgulho da unidade nacional
entre as diferentes confissões". De
fato, estão todos unidos contra o
Estado de Israel. Mas e se a população do Líbano decidir que está satisfeita com um possível acordo de
paz entre palestinos e Israel, e o Líbano decidir assinar um tratado de
paz também?
Nasrallah - O que importa é que
os palestinos aceitem o acordo de
paz, não os libaneses. Qualquer
solução tem de ter o apoio dos palestinos, mas até agora esse apoio
não existe. Não há um só palestino que aceite um acordo que não
inclua o direito de retorno à sua
própria terra, ou que abra mão da
cidade de Jerusalém. De qualquer
maneira, o que está sendo proposto agora, tanto para os palestinos como para os libaneses ou sírios, não satisfaz à maioria das populações de nenhum desses países.
Folha - Agora, com relação a algo
que envolve o Brasil diretamente,
o Hizbollah recebe doações da Tríplice Fronteira [região entre Brasil,
Argentina e Paraguai onde há uma
importante comunidade islâmica]?
Nasrallah - Os libaneses que moram nessa área emigraram por
causa das dificuldades econômicas no Líbano e por causa da guerra. Mal conseguem alimentar
toda a família que
têm no Líbano.
Não existe doação
nenhuma vinda
dessa área.
Folha - A sua luta
é contra a injustiça
ou contra os "infiéis"? Por que o
Hizbollah não combate a opressão em
países árabes, como a que existia
contra os xiitas no
Iraque de Saddam
Hussein?
Nasrallah - O
Hizbollah se estabeleceu no Líbano
por causa da invasão israelense. Como você sabe, eles
ocuparam uma
grande parte do
território libanês,
entraram na capital, Beirute, mataram dezenas de
milhares de pessoas, cometeram
genocídio [Israel
nega ter cometido
genocídio durante
a invasão do Líbano em 1982], destruíram várias cidades. No que diz respeito a lutar
contra injustiças, existem vários
aspectos da injustiça no nosso
país e na nossa região, mas a injustiça pode ser combatida de maneiras diferentes. Às vezes, recorrer às armas para combater certa
injustiça é prejudicial. Nós temos
os meios políticos, o meio popular, até a mídia é um veículo para
combater injustiça.
Folha - Se Israel deixar a área de
Shebaa [região ocupada por Israel
que, segundo a
ONU, é síria, mas,
segundo o Hizbollah, é libanesa], o
Hizbollah vai continuar lutando pelos palestinos?
Nasrallah - A razão da existência
do Hizbollah é defensiva. Desde a
retirada de Israel
em 2000, ainda
existem algumas
operações militares nas fronteiras,
e na área de Shebaa. Israel também mantém prisioneiros libaneses, temos o problema dos 300 mil
refugiados palestinos no Líbano,
sofremos violações diárias do
território libanês,
assim como bombardeio na fronteira e a ameaça
constante de
guerra. Alguns
meses atrás, o Líbano quis usar
uma parte da
água do Wazzani,
um rio pequeno que nasce no Líbano e vai para a Palestina. É direito do Líbano usar uma parte
daquela água, assegurado por
acordos internacionais, e o governo libanês tentou usar menos do
que o que lhe cabe. Sharon pessoalmente ameaçou com guerra.
Então nós estamos num país que
é ameaçado e nós estamos na posição de defendê-lo. No que diz
respeito à questão da Palestina, é
o povo palestino que luta para liberar a sua terra, como os libaneses lutaram para liberar a sua. É
claro que é dever de todos nós
apoiá-los, mas ninguém deveria
lutar no lugar de ninguém.
Folha - Alguns analistas acreditam que, com um eventual acordo
entre Israel e Palestina, o Hizbollah
perderia a razão de ser.
Nasrallah - Isso não é verdade. O
Hizbollah administra vários conselhos municipais e participa das
áreas sociais, educacionais e de
saúde. O Hizbollah tem uma plataforma política no Líbano e é
atualmente o maior partido político do país.
Folha - O Hizbollah é a favor de
uma república islâmica no Líbano?
Nasrallah - É natural que nós aspiremos, em teoria, a um Estado
islâmico. Mas nós também acreditamos que um Estado muçulmano não pode ser uma imposição. As pessoas precisam acreditar nesse projeto. Veja por exemplo o caso do Irã. Foi o povo iraniano que derrubou o regime do
xá [Reza Pahlevi]. Não foi um golpe de Estado, foram dezenas de
milhões de iranianos. Depois, numa eleição livre, os iranianos elegeram um conselho de especialistas, que redigiu a Constituição,
adotada pelo Estado islâmico e
aprovada em referendo. Se o povo
libanês desejar um Estado islâmico, então eles terão. Mas isso nunca vai ser uma imposição.
Folha - Então uma república islâmica no Líbano permitiria que os
cristãos tivessem seus próprios
costumes, igrejas, regras sobre casamento, divórcio, herança?
Nasrallah - Em primeiro lugar,
não existe clima no Líbano para
um Estado islâmico, mas eu posso
falar sobre a experiência no Irã.
Os cristãos têm suas próprias
igrejas, sua própria entidade social e política, praticam seus ritos,
até os judeus têm suas próprias
cortes religiosas e membros no
Parlamento, mesmo sendo uma
minoria pequena. Os direitos civis
são iguais aos dos muçulmanos.
Folha - Quando o seu filho morreu lutando contra Israel, a sua reação foi de uma resignação praticamente sobre-humana. Seu sorriso
chegou a virar notícia. Mas, na intimidade, como Hassan Nasrallah
reagiu? O sr. acredita que se deve
ter prazer neste mundo, ou tudo
que se espera é a vida após a morte
prometida no Alcorão? O sr. consegue pensar em coisas mais temporais como a felicidade e o conforto?
Nasrallah - Antes de o meu filho
ter sido martirizado em 1997 [o
verbo "morrer" praticamente não
existe para se referir a muçulmanos que morrem lutando contra
Israel], por 15 anos eu vinha dando adeus a outros mártires. Com
todos eles eu me senti como se
eles fossem meus filhos e irmãos.
É claro que com Hadi tive um sentido de perda diferente, porque
ele é meu filho direto. Mas todos
foram martirizados pela causa em
que acreditamos. Nós temos de
nos satisfazer com a escolha de
Deus. Eu pessoalmente sinto a
dor de perdê-los, posso até chorar
em segredo, mas, no campo de
batalha, militar ou político, temos
de ser fortes e resolutos.
Quanto à noção que você apresentou, o islã é uma religião para
esta vida e a próxima. O Alcorão
prega aos fiéis que aproveitem o
que Deus lhes deu, as coisas boas,
sem cair em pecado. O islã tem
uma noção diferente do cristianismo, até no que diz respeito ao
clero. Nós não temos monges no
islã, reclusão. O homem [religioso] pode viver uma vida natural,
casar, ter filhos, comprar e vender, ser ativo na política. Mas a vida após a morte tem uma posição
especial no coração dos muçulmanos porque é eterna, enquanto
esta vida é temporal, limitada.
Folha - O sr. acredita que aqueles
que seguem dogmas religiosos, como rezar cinco vezes ao dia, estejam mais próximos de Deus do que,
por exemplo, pessoas que não
acreditam nesses ritos, mas fazem
o bem a outras pessoas?
Nasrallah - Tudo tem o seu próprio valor. Ajudar os outros tem
enorme valor, não há dúvida. E
oração também tem um grande
valor. Deus nos pediu que fizéssemos os dois. Se praticarmos um
sem praticar o outro, estará faltando algo nas nossas vidas e nos
nossos valores. Nós não acreditamos que religião consiste apenas
de rituais. Deus nos disse para venerá-Lo a fim de que nos purificássemos, mas não porque Ele
precise da nossa adoração.
O Alcorão diz que orações previnem que se cometam pecados,
coisas ruins para si e para os outros. Portanto, aquele que ora,
mas agride os outros, rouba, deixa
de ajudar os necessitados quando
pode fazê-lo, para essa pessoa a
oração não tem valor nenhum,
porque a sua oração é só externa.
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