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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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MÍDIA

De epopéia heróica, resgate se transforma em marco das críticas contra a desinformação durante a guerra no Iraque

Caso da recruta Jessica une realidade e ficção

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Primeiro foi o programa "Correspondent", da BBC, levado ao ar em 15 de maio. Em seguida uma longa reportagem do "Washington Post", na última terça.
Depois dessas tijoladas, sobrou muito pouco da versão inicial do resgate de Jessica Lynch, 19, apresentado em 2 de abril como o mais épico dos episódios da guerra anglo-americana no Iraque.
Mark Feldstein, professor de mídia e políticas públicas na Universidade George Washington, disse à Folha que Jessica Lynch foi a protagonista de uma história inverídica. "Quando a cobertura jornalística é patriótica, ela precisa de personagens heróicos para justificar seu enfoque", afirmou.
E tudo acabou em "propaganda de guerra, que beneficiou um governo que costuma com frequência manipular informações".
Aos fatos: Jessica terminara o colegial na cidade de Palestine, Virgínia Ocidental. Trabalhava como balconista. Precisava juntar dinheiro para custear uma universidade. Decidiu se alistar no Exército, que é profissional.
Acabou na 507ª Companhia de Manutenção, baseada no Texas. Foi deslocada para o Oriente Médio. Ela e seus colegas não eram propriamente combatentes. Tinham por missão manter e ativar peças dos mísseis Patriot.
Já no Iraque, formavam um comboio na retaguarda da longa coluna de 8.000 veículos da 3ª Divisão de Infantaria, desembarcada no Kuait e que rumava hesitante na direção de Bagdá.
A guerra não estava sendo um passeio. Os incidentes tornavam duvidosa a previsão de poucos combates, porque militares desertariam e a população aplaudiria a chegada dos libertadores.
A 3ª Divisão mudou seu rumo. Não avisou a 507ª Companhia. A companhia se perdeu. Estava com 12 horas de atraso e sem poder de fogo caso fosse emboscada por iraquianos numerosos.
Lynch estava dentro de um dos 18 jipes Humvee. O grupo estava nas imediações de Nassiriah. A pequena coluna se perdeu. Procurava voltar à estrada principal. Ninguém dormia havia 60 horas. Exaustão completa. Os veículos entraram numa estrada errada. Um soldado iraquiano atirou sobre o jipe de Jessica uma granada. O jipe perdeu o controle e se espatifou contra um caminhão militar norte-americano.
No acidente morreram oito ocupantes do veículo. Outros três norte-americanos da mesma coluna já haviam morrido, mas em confrontos com militares iraquianos. Cinco soldados capturados com vida seriam libertados em meio à debandada posterior das tropas regulares de Saddam.
Sobreviveram, entre os tripulantes do jipe, Jessica e Lori Piestewa, uma outra mulher, que morreria no hospital em decorrência dos ferimentos pouco depois. Eram 10h do dia 23 de março.
À 1h na madrugada de 1º de abril um comando de elite invadiu o hospital central de Nassiriah para "libertar a prisioneira de guerra". Ela foi retirada de helicóptero e em seguida embarcada para um hospital militar americano na Alemanha. Seguiu depois para os EUA. Permanece internada no hospital militar Walter Reed. Recomeçou recentemente a andar, mas com dificuldade. Não pode dar entrevistas ou se relacionar com os demais pacientes.
No dia 2 de abril o resgate era revelado em Qatar pelo comando norte-americano. Jornais e emissoras de TV engoliram a versão de que soldados enfrentaram uma chuva de balas para retirar a prisioneira de seu cárcere.
Segundo as mesmas versões, fornecidas por oficiais que não permitiram a publicação de seus nomes, Jessica, ao ser presa, teria esvaziado sua arma contra os inimigos. Ela teria sido ferida por arma de fogo. E na prisão a esbofetearam e a interrogaram.
A BBC deu uma versão bem diferente. Entrevistou médicos e enfermeiras. Eles sabiam que a guerra duraria pouco e que tinham em mãos uma oportunidade para demonstrar boa vontade para com os ocupantes dos Estados Unidos. Trataram bem Jessica Lynch.
Tanto o "Post" quanto a emissora pública britânica descrevem a palhaçada da operação de resgate. Soldados foram filmados atirando com festim contra médicos e funcionários, numa simulação de tiroteio. Derrubaram portas do hospital em lugar de usar as chaves oferecidas. As tropas de Saddam haviam deixado a cidade na manhã do dia anterior.
O "New York Times", que entrou só anteontem na onda de indignação pelas inverdades que cercaram o episódio, qualificou a Jessica produzida pelo Pentágono de "caricatura hollywoodiana".
Frase do colunista Nicholas D. Kristof: "Foi uma complexa fábula amplamente simplificada por funcionários, parcialmente em razão das ambiguidades genuínas e parcialmente porque eles queriam uma boa reportagem a partir da qual construiriam apoio político para a guerra".


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