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MÍDIA
De epopéia heróica, resgate se transforma em marco das críticas contra a desinformação durante a guerra no Iraque
Caso da recruta Jessica une realidade e ficção
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Primeiro foi o programa "Correspondent", da BBC, levado ao
ar em 15 de maio. Em seguida
uma longa reportagem do "Washington Post", na última terça.
Depois dessas tijoladas, sobrou
muito pouco da versão inicial do
resgate de Jessica Lynch, 19, apresentado em 2 de abril como o
mais épico dos episódios da guerra anglo-americana no Iraque.
Mark Feldstein, professor de
mídia e políticas públicas na Universidade George Washington,
disse à Folha que Jessica Lynch foi
a protagonista de uma história inverídica. "Quando a cobertura
jornalística é patriótica, ela precisa de personagens heróicos para
justificar seu enfoque", afirmou.
E tudo acabou em "propaganda
de guerra, que beneficiou um governo que costuma com frequência manipular informações".
Aos fatos: Jessica terminara o
colegial na cidade de Palestine,
Virgínia Ocidental. Trabalhava
como balconista. Precisava juntar
dinheiro para custear uma universidade. Decidiu se alistar no
Exército, que é profissional.
Acabou na 507ª Companhia de
Manutenção, baseada no Texas.
Foi deslocada para o Oriente Médio. Ela e seus colegas não eram
propriamente combatentes. Tinham por missão manter e ativar
peças dos mísseis Patriot.
Já no Iraque, formavam um
comboio na retaguarda da longa
coluna de 8.000 veículos da 3ª Divisão de Infantaria, desembarcada no Kuait e que rumava hesitante na direção de Bagdá.
A guerra não estava sendo um
passeio. Os incidentes tornavam
duvidosa a previsão de poucos
combates, porque militares desertariam e a população aplaudiria a chegada dos libertadores.
A 3ª Divisão mudou seu rumo.
Não avisou a 507ª Companhia. A
companhia se perdeu. Estava com
12 horas de atraso e sem poder de
fogo caso fosse emboscada por
iraquianos numerosos.
Lynch estava dentro de um dos
18 jipes Humvee. O grupo estava
nas imediações de Nassiriah. A
pequena coluna se perdeu. Procurava voltar à estrada principal.
Ninguém dormia havia 60 horas.
Exaustão completa. Os veículos
entraram numa estrada errada.
Um soldado iraquiano atirou sobre o jipe de Jessica uma granada.
O jipe perdeu o controle e se espatifou contra um caminhão militar
norte-americano.
No acidente morreram oito
ocupantes do veículo. Outros três
norte-americanos da mesma coluna já haviam morrido, mas em
confrontos com militares iraquianos. Cinco soldados capturados
com vida seriam libertados em
meio à debandada posterior das
tropas regulares de Saddam.
Sobreviveram, entre os tripulantes do jipe, Jessica e Lori Piestewa, uma outra mulher, que morreria no hospital em decorrência
dos ferimentos pouco depois.
Eram 10h do dia 23 de março.
À 1h na madrugada de 1º de
abril um comando de elite invadiu o hospital central de Nassiriah
para "libertar a prisioneira de
guerra". Ela foi retirada de helicóptero e em seguida embarcada
para um hospital militar americano na Alemanha. Seguiu depois
para os EUA. Permanece internada no hospital militar Walter
Reed. Recomeçou recentemente a
andar, mas com dificuldade. Não
pode dar entrevistas ou se relacionar com os demais pacientes.
No dia 2 de abril o resgate era revelado em Qatar pelo comando
norte-americano. Jornais e emissoras de TV engoliram a versão de
que soldados enfrentaram uma
chuva de balas para retirar a prisioneira de seu cárcere.
Segundo as mesmas versões,
fornecidas por oficiais que não
permitiram a publicação de seus
nomes, Jessica, ao ser presa, teria
esvaziado sua arma contra os inimigos. Ela teria sido ferida por arma de fogo. E na prisão a esbofetearam e a interrogaram.
A BBC deu uma versão bem diferente. Entrevistou médicos e enfermeiras. Eles sabiam que a guerra duraria pouco e que tinham em
mãos uma oportunidade para demonstrar boa vontade para com
os ocupantes dos Estados Unidos.
Trataram bem Jessica Lynch.
Tanto o "Post" quanto a emissora pública britânica descrevem
a palhaçada da operação de resgate. Soldados foram filmados atirando com festim contra médicos
e funcionários, numa simulação
de tiroteio. Derrubaram portas do
hospital em lugar de usar as chaves oferecidas. As tropas de Saddam haviam deixado a cidade na
manhã do dia anterior.
O "New York Times", que entrou só anteontem na onda de indignação pelas inverdades que
cercaram o episódio, qualificou a
Jessica produzida pelo Pentágono
de "caricatura hollywoodiana".
Frase do colunista Nicholas D.
Kristof: "Foi uma complexa fábula amplamente simplificada por
funcionários, parcialmente em
razão das ambiguidades genuínas
e parcialmente porque eles queriam uma boa reportagem a partir
da qual construiriam apoio político para a guerra".
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