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HISTÓRIA
Filósofo francês rebate acusações feitas no documentário "Sacrifício" e aponta campanha cubana de propaganda
Debray nega delação que levou Che Guevara à morte
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Após meses de silêncio, o filósofo e escritor francês Régis Debray,
60, decidiu rebater as acusações
feitas contra ele no documentário
"Sacrifício", dos cineastas suecos
Erik Gandini e Tarik Saleh, que,
baseados em depoimentos de
pessoas que presenciaram ou viveram os fatos, afirmam que não
foi o ex-guerrilheiro e pintor argentino Ciro Bustos, mas Debray,
o responsável pela delação que
conduziu o Exército da Bolívia a
descobrir o esconderijo de Ernesto Che Guevara na selva do país e
a matá-lo, em 1967.
"As acusações são tão absurdas
e ofensivas que não tenho mais a
intenção de discutir esse assunto.
Indubitavelmente, trata-se de
uma vil campanha de propaganda orquestrada pelos serviços secretos cubanos. No diário francês
"Libération", há alguns meses, Elisabeth Burgos respondeu a essas
acusações de modo conveniente",
afirmou Debray, de Paris, à Folha.
Contudo os argumentos da antropóloga venezuelana Burgos,
que foi casada com o filósofo francês, são todos refutados pelos diretores do documentário sueco.
"Não entrevistamos Burgos pelo
mesmo motivo por que não falamos com a mulher de Bustos. Ela
não estava na Bolívia quando tudo aconteceu, o que pode saber?
Qual é sua credibilidade?", explicaram Gandini e Saleh.
"A única novidade em tudo o
que ela disse é que Debray não poderia ter sido o primeiro a confirmar a presença de Che na Bolívia
porque o Exército já possuía essa
informação. Então, por que é tão
importante para Debray e para [o
historiador francês" Pierre Kalfon
culpar Bustos pela delação?",
acrescentaram os cineastas.
"Por outro lado, entrevistamos
dois generais bolivianos que lideraram as operações na selva contra os guerrilheiros de Che, Gary
Prado, hoje embaixador em Londres, e Vargas Salinas. Eles não teriam nenhuma razão para inventar a mesma história nem interesse em proteger-se mutuamente.
Ambos confirmaram que Debray
falou primeiro."
Em Miami, eles também encontraram um cubano exilado, chamado Felix Rodriguez, que foi
agente da CIA (agência de inteligência dos EUA) e estava presente
à execução de Che. Rodriguez
confirmou que Bustos conseguiu
manter sua identidade falsa por
mais tempo que Debray. "Para a
CIA, quem interessava era Debray. Sua presença provava que
Che estava na Bolívia. Ele já era
conhecido, e sabíamos que ele era
um dos homens de Fidel", afirma
Rodriguez no documentário.
A versão dos fatos conhecida internacionalmente (segundo a
qual Bustos teria delatado Che e
desenhado o rosto dos principais
guerrilheiros que estavam escondidos na selva) foi popularizada
por duas biografias de Che publicadas em 1997, em comemoração
do 30º aniversário da morte do revolucionário argentino: uma de
Kalfon, outra do atual chanceler
mexicano, Jorge Castañeda.
"Kalfon e Castañeda preferiram
defender uma teoria que se baseia
em rumores, pois a verdade se encontra nas transcrições dos interrogatórios feitos pelo Exército boliviano, que ainda são confidenciais", disseram os cineastas.
Castañeda e Kalfon, amigo pessoal de Debray, basearam seus relatos sobre a morte de Che num livro escrito por Gustavo Sanchez
em 1968. "Sanchez é uma das figuras mais sinistras da política boliviana e, quando era ministro do
Interior, esteve ligado ao tráfico
de armas", sustentaram Gandini e
Saleh. Kalfon admite, no documentário sueco, que não leu os
documentos bolivianos relacionados à morte de Che.
Argumentos de Burgos
De acordo com a antropóloga
venezuelana, um dos fatos que
deixam claro que foi Bustos o autor da delação é o pintor argentino ter desenhado o retrato dos
guerrilheiros, além de ter informado aos militares venezuelanos
a localização dos esconderijos em
que se encontravam documentos
importantes da guerrilha.
"Para mim, era importante que
os militares não descobrissem
que eu era responsável pela propagação da revolução para a Argentina. Sobretudo, eu queria
ocultar a identidade dos membros de meu grupo na Argentina.
Só desenhei o rosto das pessoas
que já eram conhecidas", defendeu-se Bustos, de Malmö, na Suécia, onde vive atualmente. Ele diz
ter ficado 30 anos calado para
proteger seus homens.
Burgos também citou o prefácio
do diário de Che na Bolívia, escrito por Fidel Castro, no qual o ditador cubano lamenta que Che tenha morrido sem ter conhecimento da "atitude firme e valente" que Debray teve ante seus torturadores, quando, ao lado de
Bustos, estava preso na Bolívia.
Eles foram detidos quando deixavam a selva para cumprir tarefas
delegadas por Che.
"Fidel gasta quase uma página
glorificando o comportamento de
Debray durante o interrogatório.
Mas como ele podia saber o que
tinha acontecido na Bolívia? Afinal, estava em Cuba. Trata-se de
um exemplo concreto de como a
história pode ser escrita para sustentar uma causa política", declararam os cineastas suecos.
"À época [1969], Cuba precisava
de amigos influentes, como Debray. Ele tornou-se o "queridinho"
de Fidel, que o transformou num
herói e o tratava como uma mascote. Hoje, como critica o regime
cubano, Debray é considerado
por Fidel um traidor. Não estamos interessados na utilização
política da história, somos jovens
demais para isso. O que nos interessa é o modo como a história é
escrita, foi por isso que fizemos
"Sacrifício'", acrescentaram. Gandini tem 33 anos, Saleh, 29.
Debray foi o principal teórico
do castrismo nos anos 1960. Depois de ser libertado pelos militares bolivianos, em 1970, tendo
cumprido três anos de prisão, Debray transformou-se num dos
mais importantes intelectuais da
esquerda mundial. Chegou até a
ser conselheiro do ex-presidente
francês François Mitterrand
(1981-1995). Hoje renega a luta armada e critica o regime cubano.
Arquivos
"No que me concerne, essa história é página virada. Quando
rompi com o regime castrista, há
cerca de dez anos, virei a página e
não pretendo voltar a ela cada vez
que alguém publicar algo a esse
respeito", afirmou Debray.
A verdade encontra-se nos arquivos do Exército colombiano,
que permanecem confidenciais.
Isso significa que, por enquanto,
talvez apenas Bustos e Debray a
conheçam. "O que mais queremos é que o Exército abra seus arquivos", admitiram os cineastas.
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