São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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HISTÓRIA
Filósofo francês rebate acusações feitas no documentário "Sacrifício" e aponta campanha cubana de propaganda

Debray nega delação que levou Che Guevara à morte

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Após meses de silêncio, o filósofo e escritor francês Régis Debray, 60, decidiu rebater as acusações feitas contra ele no documentário "Sacrifício", dos cineastas suecos Erik Gandini e Tarik Saleh, que, baseados em depoimentos de pessoas que presenciaram ou viveram os fatos, afirmam que não foi o ex-guerrilheiro e pintor argentino Ciro Bustos, mas Debray, o responsável pela delação que conduziu o Exército da Bolívia a descobrir o esconderijo de Ernesto Che Guevara na selva do país e a matá-lo, em 1967.
"As acusações são tão absurdas e ofensivas que não tenho mais a intenção de discutir esse assunto. Indubitavelmente, trata-se de uma vil campanha de propaganda orquestrada pelos serviços secretos cubanos. No diário francês "Libération", há alguns meses, Elisabeth Burgos respondeu a essas acusações de modo conveniente", afirmou Debray, de Paris, à Folha.
Contudo os argumentos da antropóloga venezuelana Burgos, que foi casada com o filósofo francês, são todos refutados pelos diretores do documentário sueco. "Não entrevistamos Burgos pelo mesmo motivo por que não falamos com a mulher de Bustos. Ela não estava na Bolívia quando tudo aconteceu, o que pode saber? Qual é sua credibilidade?", explicaram Gandini e Saleh.
"A única novidade em tudo o que ela disse é que Debray não poderia ter sido o primeiro a confirmar a presença de Che na Bolívia porque o Exército já possuía essa informação. Então, por que é tão importante para Debray e para [o historiador francês" Pierre Kalfon culpar Bustos pela delação?", acrescentaram os cineastas.
"Por outro lado, entrevistamos dois generais bolivianos que lideraram as operações na selva contra os guerrilheiros de Che, Gary Prado, hoje embaixador em Londres, e Vargas Salinas. Eles não teriam nenhuma razão para inventar a mesma história nem interesse em proteger-se mutuamente. Ambos confirmaram que Debray falou primeiro."
Em Miami, eles também encontraram um cubano exilado, chamado Felix Rodriguez, que foi agente da CIA (agência de inteligência dos EUA) e estava presente à execução de Che. Rodriguez confirmou que Bustos conseguiu manter sua identidade falsa por mais tempo que Debray. "Para a CIA, quem interessava era Debray. Sua presença provava que Che estava na Bolívia. Ele já era conhecido, e sabíamos que ele era um dos homens de Fidel", afirma Rodriguez no documentário.
A versão dos fatos conhecida internacionalmente (segundo a qual Bustos teria delatado Che e desenhado o rosto dos principais guerrilheiros que estavam escondidos na selva) foi popularizada por duas biografias de Che publicadas em 1997, em comemoração do 30º aniversário da morte do revolucionário argentino: uma de Kalfon, outra do atual chanceler mexicano, Jorge Castañeda.
"Kalfon e Castañeda preferiram defender uma teoria que se baseia em rumores, pois a verdade se encontra nas transcrições dos interrogatórios feitos pelo Exército boliviano, que ainda são confidenciais", disseram os cineastas.
Castañeda e Kalfon, amigo pessoal de Debray, basearam seus relatos sobre a morte de Che num livro escrito por Gustavo Sanchez em 1968. "Sanchez é uma das figuras mais sinistras da política boliviana e, quando era ministro do Interior, esteve ligado ao tráfico de armas", sustentaram Gandini e Saleh. Kalfon admite, no documentário sueco, que não leu os documentos bolivianos relacionados à morte de Che.

Argumentos de Burgos
De acordo com a antropóloga venezuelana, um dos fatos que deixam claro que foi Bustos o autor da delação é o pintor argentino ter desenhado o retrato dos guerrilheiros, além de ter informado aos militares venezuelanos a localização dos esconderijos em que se encontravam documentos importantes da guerrilha.
"Para mim, era importante que os militares não descobrissem que eu era responsável pela propagação da revolução para a Argentina. Sobretudo, eu queria ocultar a identidade dos membros de meu grupo na Argentina. Só desenhei o rosto das pessoas que já eram conhecidas", defendeu-se Bustos, de Malmö, na Suécia, onde vive atualmente. Ele diz ter ficado 30 anos calado para proteger seus homens.
Burgos também citou o prefácio do diário de Che na Bolívia, escrito por Fidel Castro, no qual o ditador cubano lamenta que Che tenha morrido sem ter conhecimento da "atitude firme e valente" que Debray teve ante seus torturadores, quando, ao lado de Bustos, estava preso na Bolívia. Eles foram detidos quando deixavam a selva para cumprir tarefas delegadas por Che.
"Fidel gasta quase uma página glorificando o comportamento de Debray durante o interrogatório. Mas como ele podia saber o que tinha acontecido na Bolívia? Afinal, estava em Cuba. Trata-se de um exemplo concreto de como a história pode ser escrita para sustentar uma causa política", declararam os cineastas suecos.
"À época [1969], Cuba precisava de amigos influentes, como Debray. Ele tornou-se o "queridinho" de Fidel, que o transformou num herói e o tratava como uma mascote. Hoje, como critica o regime cubano, Debray é considerado por Fidel um traidor. Não estamos interessados na utilização política da história, somos jovens demais para isso. O que nos interessa é o modo como a história é escrita, foi por isso que fizemos "Sacrifício'", acrescentaram. Gandini tem 33 anos, Saleh, 29.
Debray foi o principal teórico do castrismo nos anos 1960. Depois de ser libertado pelos militares bolivianos, em 1970, tendo cumprido três anos de prisão, Debray transformou-se num dos mais importantes intelectuais da esquerda mundial. Chegou até a ser conselheiro do ex-presidente francês François Mitterrand (1981-1995). Hoje renega a luta armada e critica o regime cubano.

Arquivos
"No que me concerne, essa história é página virada. Quando rompi com o regime castrista, há cerca de dez anos, virei a página e não pretendo voltar a ela cada vez que alguém publicar algo a esse respeito", afirmou Debray.
A verdade encontra-se nos arquivos do Exército colombiano, que permanecem confidenciais. Isso significa que, por enquanto, talvez apenas Bustos e Debray a conheçam. "O que mais queremos é que o Exército abra seus arquivos", admitiram os cineastas.


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