São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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GUERRA SEM LIMITES

Laqueur, fundador dos estudos sobre o terror, afirma que a atual fase é transição para a destruição em massa

Megaterror está a caminho, diz analista

FERNANDO CANZIAN
DE WASHINGTON

O pesquisador e historiador alemão Walter Laqueur, 83, afirma que os ataques com aviões cheios de combustível contra o World Trade Center e o Pentágono no 11 de Setembro foram um estágio intermediário entre o terrorismo "à antiga" e uma nova e crescente possibilidade: o megaterrorismo, com o uso de armas de destruição em massa.
Criador da pesquisa sobre terrorismo, no final dos anos 60, Laqueur afirma que, nesta nova fase, as ameaças "são crescentes e podem vir de qualquer lado".
"A resposta cada vez mais simples, de que somente os mais fanáticos se tornam terroristas, não é verdadeira. Pode ser qualquer um", diz, em entrevista à Folha.
"A tendência tem sido dizer que o problema está todo calcado em questões ideológicas. Seriam radicais, pessoas pobres, oprimidas ou submetidas a ditaduras. Há algo mais aí", afirma. Laqueur diz acreditar que exista uma "predisposição cultural e psicológica" na raiz do problema.
O historiador não considera relevante a ligação entre pobreza e o terrorismo. "Normalmente o terrorismo ocorre nos países intermediários, não nos mais pobres, onde as pessoas estão preocupadas apenas em sobreviver."
Em "The Terrorism to Come" (o terrorismo que vem aí), um artigo recente para a "Policy Review", Laqueur relembra as posições de Sigmund Freud (1856-1939) sobre os "instintos agressivos" da humanidade, que só poderiam ser controlados a partir de motivações racionais.
"Freud estava parcialmente correto: a guerra, pelo menos entre grandes potências, se tornou pouco provável por motivos racionais. Isso não se aplica ao terrorismo estimulado não por razões políticas ou econômicas, e também não somente pelo instinto de agressão, mas também por um fanatismo misturado à loucura."
Autor de mais de duas dezenas de livros, entre eles "Geração Êxodo" (2001), da qual é um representante perfeito, Laqueur deixou a Alemanha durante a ascensão do nazismo.
Seguiu o caminho de outros estrangeiros ilustres de seu tempo que se radicaram nos EUA, como os ex-secretários de Estado americanos Madeleine Albright (nascida na então Tchecoslováquia em 1937) e Henry Kissinger (nascido na Alemanha em 1923) e o historiador Peter Gay (nascido na Alemanha em 1923).
Laqueur é atualmente co-presidente do International Research Council, setor do Center for Strategic and International Studies, de Washington. Leia, a seguir, trechos da entrevista à Folha.
 

O megaterrorismo não partirá necessariamente de grupos islâmicos. Pode vir de qualquer lado. Basta um bando de pessoas malucas. Você não precisa de um exército. Bastam dez ou cinco pessoas com dinheiro para ter acesso a armas de destruição em massa, que existem por aí

Bin Laden não é exatamente um louco, há uma certa lógica no modo como planejou as ações. Creio que ele veja o mundo ocidental como extremamente decadente. Ele acreditava que, se atacasse uma, duas ou três vezes, haveria um colapso monumental. Isso foi um erro da parte dele

Folha - Em seu artigo para a "Policy Review", o sr. afirma que as análises político-econômicas não ajudam a entender o terrorismo e que há uma relutância em explorar razões culturais e psicológicas. Como isso ocorre?
Walter Laqueur -
As pessoas que vêm tentando estudar o terrorismo estão negligenciando uma questão fundamental: quem se torna um terrorista? O que leva algumas pessoas a se tornarem terroristas em meio a uma maioria que não pensa no assunto?
A resposta mais simples, de que somente os mais fanáticos se tornam terroristas, não é verdadeira, pois, mesmo em um grupo de cem pessoas que acreditam em uma causa comum, apenas um ou dois se tornam terroristas. O que os levaria a isso?
Desejo de agressão? São as pessoas mais fracas, que podem ser facilmente influenciadas? Aqui entra a questão psicológica. A tendência tem sido dizer que o problema está todo calcado em questões ideológicas. Os potenciais terroristas são pobres, oprimidos ou submetidos a ditaduras. Deve haver algo mais, e isso não está sendo explorado. Olhamos hoje somente para as causas que não explicam totalmente o problema.

Folha - O sr. discorda de análises de instituições como o Banco Mundial, que vêem pobreza e falta de perspectivas na base da expansão do terrorismo, pelo menos no mundo árabe?
Laqueur -
Não acredito nisso. Se olharmos para os 50 países mais pobres do mundo, temos todo o tipo de violência, mas não o terrorismo. É verdade que, nos países mais ricos, há muito pouco terrorismo. Mas normalmente o terrorismo ocorre nos países intermediários, não nos mais pobres, onde as pessoas estão preocupadas apenas em sobreviver.
Obviamente existe a possibilidade de que uma situação de desemprego e falta de perspectivas seja utilizada para ajudar a instigar o terrorismo onde ele já se faz presente. Mas dizer que pobreza causa terrorismo não é certo. Os pobres já têm problemas demais para se preocuparem.

Folha - No caso do terrorista mais famoso da atualidade, o saudita Osama bin Laden, líder da rede Al Qaeda, a aparente motivação é fanatismo religioso. Isso está claro, não?
Laqueur -
É óbvio que no caso de Bin Laden a religião é um fator muito importante. Mas, no caso dele, como dizia, a pobreza não tem nenhum papel, pois Bin Laden não é exatamente um sujeito sem recursos. No seu caso, certamente há um forte aspecto de radicalismo religioso. Mas também não é só isso. Parece-me muito mais haver um estímulo liderado por um instinto de agressão, que em algumas partes do mundo se mostra maior do que em outras.
Bin Laden não é exatamente um louco, pois há uma certa lógica peculiar no modo como planejou as ações e envolveu várias pessoas de vários países nos ataques.
Por trás dessa lógica, creio que ele veja a América e o resto do mundo ocidental como extremamente decadentes. Ele acreditava que, se atacasse uma, duas ou três vezes, haveria um colapso monumental. Isso foi um erro da parte dele. Bin Laden tinha algumas razões para supor que os EUA não passavam de um tigre de papel.

Folha - Voltando ao aspecto cultural e psicológico, o sr. diz existir um forte motivo de preocupação em meio à segunda geração de imigrantes, sobretudo na Europa.
Laqueur -
Isso sempre será um problema. No caso dos muçulmanos do norte da África, do mundo árabe e do Paquistão, mesmo depois de terem imigrado, há sempre um desejo de manter a cultura de seus países de origem.
As primeiras gerações normalmente chegam a seus destinos e praticamente não sabem a língua e não conseguem, no limite, sequer articular adequadamente suas reclamações e fazer valer os seus direitos.
A segunda geração, ao contrário, absorve completamente a língua do país, mas, psicologicamente e culturalmente, mantém o sentimento de que não é totalmente aceita nesse novo país. Isso não é verdade em todos os casos, especialmente nos dos imigrantes ou de seus filhos que se dão muito bem economicamente.
Mas, no geral, o sentimento que permanece é o de que eles não são parte desse novo mundo. Os imigrantes continuam rejeitados, isolados e marcados, e isso causa uma série de atritos com a população local. É uma situação de atritos e ressentimentos que se auto-alimenta. Esse é um cenário fértil para conflitos e para o reforço da possibilidade de surgir um "sentimento terrorista", seja por meio de financiamento de organizações já existentes ou mesmo com ações por conta própria.

Folha - O sr. dá a entender em seu artigo que a fase do megaterrorismo está a caminho. Como o sr. avalia todo o esforço e a esperança, ao menos retórica, dos EUA de democratizar o Oriente Médio usando o Iraque como ponto de partida e de tentar limitar esse risco?
Laqueur -
O megaterrorismo não partirá necessariamente de grupos islâmicos. Pode vir de qualquer um, de qualquer lado. Basta um bando de pessoas malucas. No caso do megaterrorismo, você não precisa de um exército. Bastam dez ou cinco pessoas com dinheiro para ter acesso a armas de destruição em massa, que existem por aí e que podem ficar disponíveis. O provável neste momento é que, certamente, o maior potencial repouse nos grupos islâmicos. Mas a ameaça pode vir da esquerda, da direita ou de grupos anarquistas. Em princípio, pode vir de qualquer lado.
No caso do Iraque, creio que os americanos estivessem muito otimistas e cheios de ilusões sobre o que achavam que poderiam fazer no Oriente Médio. Foi um erro. Creio até que foi um "erro honesto", e não uma mentira total em relação às intenções por trás da guerra. Mas foi ingenuidade acreditar que, depois de uma ditadura de 30 anos como a que existiu no Iraque, as pessoas simplesmente iriam aceitar uma democracia rapidamente.

Folha - O sr. diz que as ameaças podem vir de todos os lados, mas como avalia o papel de grupos extremistas religiosos como fonte de terrorismo?
Laqueur -
Há cem anos, essas questões religiosas não tinham nenhuma importância. Hoje em dia, há uma espécie de renascença entre setores religiosos radicais, não apenas no mundo islâmico, que, sem sombra de dúvida, é o mais importante.
Sou relativamente otimista com o fato de que esse tipo de fanatismo religioso não deve durar muito. Isso vem e vai como ondas, que têm a ver com momentos de cada geração.

Folha - Nesse contexto, o conflito entre israelenses e palestinos exacerba o problema, não?
Laqueur -
Claro que esse conflito tem uma influência, mas ela tem sido exagerada pela tendência entre as pessoas de procurar apenas uma ou duas causas determinantes para o problema do terrorismo. É preciso lembrar que, entre os grupos terroristas islâmicos em Marrocos, na Indonésia e no Afeganistão, o conflito entre israelenses e palestinos tem uma influência absolutamente secundária. Eu diria que o conflito ali tem mais um valor simbólico do que qualquer outra coisa.

Folha - Nesse quadro geral, como o sr. vê a movimentação dos EUA, que só conseguiram se tornar mais impopulares?
Laqueur
- Os Estados Unidos talvez sejam um pouco mais impopulares hoje do que já foram no passado. Mas é preciso lembrar que, mesmo na América Latina, ninguém nunca gostou dos "gringos". Sempre houve um sentimento antiamericano, não necessariamente devido a algo específico. Um grande país é sempre perigoso, mesmo que ele se comporte muito bem e com justiça. Mas será sempre uma ameaça, pois amanhã as coisas podem mudar.
No caso dos Estados Unidos, eles deveriam ter sido mais diplomáticos. Mas, mesmo que isso tivesse acontecido, a diferença entre o que poderia acontecer e o que está acontecendo talvez não fosse tão grande.


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