São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"EUA cometeram no Líbano mesmo erro que no Iraque"

Para Francis Fukuyama, Bush insistiu na abordagem militar para um problema político

Filósofo diz que violação de direitos civis em prol da luta antiterror aproxima os EUA das ditaduras latino-americanas dos anos 70


CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO

Ao adiar um posicionamento sobre a guerra no Líbano, o governo do presidente George W. Bush incorreu no mesmo erro de cálculo que cometeu no Iraque: imaginou que, ganhando tempo, Israel destruiria o Hizbollah e assim resolveria militarmente um problema político. Agora ambos, Israel e EUA, se vêem diante de uma situação de fracasso perante um oponente militarmente inferior. A análise é do célebre filósofo americano Francis Fukuyama, um dos papas do neoconservadorismo, que se voltou contra muitos dos preceitos que defendia. Nesta semana, ele lança no Brasil "O dilema americano - Democracia, poder e o legado do neoconservadorismo", pela editora Rocco. Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista à Folha.

 

FOLHA - Depois do fracasso americano no Iraque, ainda é razoável defender uma ação unilateral e preventiva na cena internacional?
FRANCIS FUKUYAMA -
Parte do argumento do meu livro é que isso já não era certo desde o início. Mas o que aconteceu no Iraque salientou o fato de que mesmo para a única superpotência mundial é difícil usar seu poder de modo eficaz para atingir os fins políticos que deseja. Os EUA são tão mais poderosos em termos militares, econômicos e políticos que qualquer outro país e ainda assim não conseguem controlar os resultados políticos nesse pequeno país. De certa maneira, a guerra no Líbano é mais um exemplo disso. Israel obviamente tem uma superioridade militar sobre todos os seus vizinhos. Mas não consegue controlar os eventos nessa pequena faixa de território de algumas dezenas de quilômetros na sua fronteira.

FOLHA - Esse fracasso e o subseqüente aumento do antiamericanismo exigem uma revisão dos princípios de política externa de Bush?
FUKUYAMA -
Sim, e é precisamente a razão por que escrevi esse livro. Os EUA precisam de um tipo bastante distinto de política externa. Muitos dos pensadores neoconservadores cujas idéias foram importantes para o governo Bush achavam que os EUA usariam seu poder de maneira benevolente para lidar com terrorismo, armas de destruição em massa e violações de direitos humanos e que seriam vistos com legitimidade pelo resto do sistema internacional mesmo se inicialmente as pessoas não concordassem com sua política. E agora parece bem claro que isso não funciona, que as pessoas não legitimam o uso que os EUA fazem do poder. Além disso, esse poder é exercido de maneira pouco competente, então é muito difícil dizer "confiem nos EUA para lidar com esse problema" se os EUA têm tido tantos problemas para executar e atingir os objetivos que estabelecem.

FOLHA - O que saiu errado no Iraque? Os EUA foram otimistas demais em pensar que poderiam mudar um regime pela via militar?
FUKUYAMA -
É uma variedade de coisas. O próprio conceito da guerra não foi correto e, mesmo com uma melhor execução, não acho que eles teriam tido sucesso, porque as condições para a estabilidade, e muito menos para a democracia, não existiam naquele país. Havia diferenças étnicas e religiosas muito sérias, havia todo o legado do regime totalitário, que deixou o país sem uma elite política que poderia administrar uma transição para um novo tipo de governo. Mas os EUA aumentaram o problema com sua total falta de planejamento para o difícil período do pós-guerra, e isso se deveu a considerações extremamente otimistas.

FOLHA - O Irã tem de responder amanhã (hoje) se aceita o pacote de incentivos da comunidade internacional ou se continua seu programa nuclear. O sr. considera improvável que os EUA entrem em uma guerra preventiva contra o Irã e também relembra a ineficácia das sanções contra o Iraque. Qual seria a saída?
FUKUYAMA -
Infelizmente, não tenho certeza de que exista uma boa saída. Algumas pessoas esperam que seja possível mudar o regime sem uma guerra, por meio do uso de grupos dissidentes ou pró-democracia, mas na situação atual isso não teria muito êxito. Mesmo o governo Bush não está muito entusiasmado com a idéia de começar uma operação militar contra o Irã. Eles esperavam que a guerra no Líbano punisse o Hizbollah e assim freasse os iranianos, mas isso não funcionou. Uma possibilidade é simplesmente continuar com esse jogo, tentar manter vivo algum tipo de processo político e esperar que eventualmente o regime caia.

FOLHA - Os EUA e a ONU foram criticados por não agirem mais rapidamente em relação ao Líbano. Eles poderiam ter agido antes, e como?
FUKUYAMA -
O governo americano poderia ter agido antes, mas não quis porque queria dar a Israel tempo suficiente para destruir o Hizbollah. Por isso, deliberadamente freou o cessar-fogo. Em parte isso foi em apoio a Israel mas também se baseou no mesmo erro intelectual que ele cometeu no Iraque, de pensar que o poderio militar poderia resolver o problema político do poder do Hizbollah no sul e que seria apenas uma questão de tempo para que o Exército de Israel destruísse a organização e mudasse o balanço de poder no Líbano, o que obviamente não aconteceu. Quanto à ONU, não é realmente culpa dela. O fato de o cessar-fogo demorar até agora era porque não havia um acordo. Essas coisas requerem que as partes envolvidas sejam convencidas de que não têm mais opções militares. E mesmo agora isso não está claro. É um cessar-fogo frágil, e há várias maneiras de imaginar que a guerra possa recomeçar, porque os israelenses estão muito insatisfeitos com o resultado, o Hizbollah foi atingido mas não derrotado, e é muito difícil que essa força internacional de paz tenha força suficiente para conseguir uma estabilidade de longo prazo.

FOLHA - O sr. diz que a maior ameaça na questão do radicalismo islâmico não está no Oriente Médio, mas na juventude alienada e em busca de identidade em lugares como Londres e Madri. Como essa ameaça pode ser "neutralizada"?
FUKUYAMA -
É uma questão difícil. Em última instância, o grande problema é que a maioria dos países europeus não é muito boa em integrar pessoas e comunidades de imigrantes muito diversas e de várias raízes culturais. Isso é algo enraizado culturalmente, há um senso de pertinência que é muito mais baseado na etnicidade e na experiência histórica compartilhada na Europa do que em outras partes do mundo. Isso é uma coisa que vai depender do trabalho dos europeus de integração, de dar trabalho a essas pessoas e fazê-las sentir que fazem parte de uma sociedade maior. Por outro lado, eles cometeram o erro de ser tolerantes demais com grupos extremistas sob o argumento de um multilateralismo que também não funcionou e prejudicou a integração.

FOLHA - Que balanço pode haver entre a luta antiterrorista e a proteção de direitos civis?
FUKUYAMA -
É difícil responder isso em termos abstratos. Os EUA provavelmente foram longe demais ao dar ao governo poder... na verdade, definitivamente foram longe demais, com o abuso de prisioneiros, detenções sem o devido processo. Esse é um problema que ocorreu por toda a América Latina nos anos 70, onde, sob o argumento de lutar contra o terrorismo, foram suspensos todos os tipos de liberdades civis. É muito decepcionante que os EUA estejam praticando esse tipo de comportamento.


NA INTERNET - Leia a íntegra na Folha Online www.folha.com.br/062332


Texto Anterior: Saddam é julgado por genocídio curdo; ex-ditador se nega a declarar inocência
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.