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Bebês africanos são preteridos em adoções internacionais
Polêmica sobre Madonna e sua tentativa de adotar bebê do Maláui acirra debate sobre desdém pelos órfãos da Aids no continente; China lidera adoções
LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO
Ao anunciar na última semana que aumentaria sua família
com o pequeno David Banda,
um menino de 13 meses nascido no Maláui, Madonna abriu
uma controvérsia bem mais séria do que as colecionadas em
seus tempos de "Material Girl"
ou "Like a Virgin". A pergunta à
tona é se a cantora, ao adotar
uma criança aparentemente pisoteando trâmites legais, foi
movida por um modismo
egoísta ou pelo desejo de fazer
uma boa ação redentora. Mas,
sob a superfície, há outra mais
importante (e difícil) de responder: seria essa uma solução
para os centenas de milhares de
órfãos que a Aids produz aos
borbotões na África?
Em entrevista concedida à
Folha em 2003, Ethan Kasptein, professor de desenvolvimento sustentável do Insead
(França) e autor de artigos sobre a adoção e o tráfico de bebês, apontou a África como o
próximo eixo do que chama de
"rota dos bebês". Passados três
anos, sua previsão ficou por se
concretizar.
"A China, a Rússia e o Vietnã
ainda são as principais fontes
de bebês para adoção transnacional", disse o professor nesta
semana ao ser indagado sobre
sua previsão. "As adoções na
África continuam sendo complicadas por conta dos círculos
familiares mais amplos, da falta de uma legislação clara sobre
o tema e, no caso dos países islâmicos, do veto a não-muçulmanos."
A professora de Harvard
(EUA) Jacqueline Bhabha, especialista em infância e direitos humanos, aponta outro fator de peso: "Ainda há racismo". "Além disso, até recentemente havia um consenso de
que bebês negros deveriam ser
adotados por famílias negras, e
assim por diante", diz Bhabha,
uma das principais estudiosas
do tráfico infantil e das adoções
internacionais nos EUA.
Ainda pesam, lembra, questões culturais: na maioria dos
países africanos a adoção por
estrangeiros não é bem vista.
"Ao passo que na China a adoção transnacional é bem aceita,
em muitos países africanos, como Ruanda, há hostilidade em
relação a casais brancos dispostos a levar os bebês para outros países", afirma ela.
Raras no Brasil, as adoções
transnacionais são lugar-comum na Europa e sobretudo
nos EUA, onde os trâmites são
rigorosos e as crianças colocadas para adoção são geralmente as mais velhas, com problemas de saúde, deficiências físicas ou negras. Por injusto que
seja, poucos as querem.
Fora do país, há mais bebês
recém-nascidos e saudáveis colocados para a adoção, e prevalece a idéia de que o processo é
mais rápido, explica Bhabha.
Na China, por exemplo, os trâmites são claros e expeditos.
Mas nesse afã pela rapidez
também se tropeça em armadilhas: na Guatemala, terceira no
ranking de adoção transnacional compilado pelo Departamento de Estado norte-americano, ficaram célebres na última década os casos de compra
de recém-nascidos. Em vários
deles, os pais adotivos ignoravam que se tratasse de comércio e pagavam somas altas para
que uma agência encontrasse
um bebê pelas vias legais, muitas vezes comprado dos pais
biológicos por US$ 50.
Estigma
Especialistas estimam entre
35 mil e 40 mil por ano as adoções transnacionais -cerca de
25 mil das quais têm como destino os EUA. Embora os números sejam dúbios por conta da
legislação frouxa nesse campo,
como alerta Bhabha, nos últimos 15 anos estima-se que as
adoções tenham triplicado.
O impulso vem da soma da
decisão de muitas mulheres de
adiar ao máximo a gravidez à
abertura da China e da Rússia
para adoções internacionais.
Ao mesmo tempo, explodiram
na mídia os dramas das crianças abandonadas nesses países
-sobretudo das meninas chinesas que sofrem sob a política
do filho único de Pequim, ante
a qual muitos, por razões sociais e econômicas, optam por
um filho homem.
Mas enquanto a adoção de
menininhas chinesas parece
totalmente absorvida pela elite
americana -em 2005, foram
7.906 vistos concedidos a bebês
do país, 70% a mais que o segundo da lista, a Rússia-, sobre
os bebês africanos ainda pairam dilemas. Se num passeio
por um parque nova-iorquino
saltará aos olhos a quantidade
de casais brancos com chinesinhas nos braços, é quase zero a
chance de ver um bebê negro
no colo de pais americanos.
Menor ainda é a probabilidade
de esse bebê ser HIV positivo.
"A Aids é uma questão importante. Muita gente gasta
muito dinheiro em exames médicos e tratamentos das crianças quando chega ao país porque quer ter certeza de que o filho vai sobreviver", diz Bhabha.
"Além disso, muitas pessoas
querem bebês que se pareçam
com elas, não só pelo estigma
mas também para que fique
mais fácil para a criança."
Os asiáticos -primeiro os coreanos e vietnamitas, agora os
chineses- escapam desse estigma exatamente por seus casos terem se tornado comuns,
com a multiplicação de associações que reúnem filhos adotivos de origem asiática nos EUA.
Com tantos poréns, o primeiro país africano a figurar na lista americana é a Etiópia, apenas em 7º lugar -441 adoções
legais-, seguida pela Libéria
-12º, com 182 adoções- e a Nigéria -17º, com 65 adoções. (O
Brasil, para se ter um parâmetro, aparece em 16º nessa lista,
com 66 bebês adotados legalmente por casais americanos o
ano passado.)
"Conta o fato de os pais buscarem uma adoção confiável,
de quererem um bebê saudável
e procurarem uma criança que
será mais bem aceita em sua comunidade -um bebê africano
no meio de uma comunidade
branca ainda é raro", afirma a
professora.
"E as pessoas morrem de medo da Aids. Elas simplesmente
não querem adotar um bebê
HIV positivo. Claro que na China a Aids também vem se tornando um problema crescente,
mas, na percepção da maioria, a
Aids é um problema dos bebês
africanos."
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