São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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ÍNDIA
Garoto abandonou sua família aos 8 anos e passou a participar de festas em Nova Déli; país tem 100 mil eunucos
Indiano foge de casa para virar eunuco

JAN McGIRK
do "The Independent", em Nova Déli

Perto do meu prédio em Nova Déli há um pequeno túmulo recoberto por um domo azul. Seu nome oficial é Sabz Birj, o Domo Verde. Durante anos, achei que era o túmulo da ama-de-leite do imperador Akbar. Mas o Domo Verde azul, pelo qual passo diariamente de carro, me faz lembrar que não devo dar nada como certo e preciso estar sempre pronta para o inesperado. Pareceu-me o lugar perfeito para topar com Shahnaz, um dos eunucos do meu bairro.
Ao lado de dois de seus amigos espalhafatosos, Shahnaz acenou para mim desde um riquixá. Os três usavam maquiagem e gritavam palavrões no trânsito.
A existência de eunucos parece ser um anacronismo, num mundo em que não faltam drag queens na TV e desfiles de gays nas ruas. Incapazes de procriar, acredita-se que podem conferir fertilidade a outras pessoas.
É por isso que a maioria das festas públicas na vida das mulheres indianas, como, por exemplo, seu casamento ou a festa promovida após o nascimento de cada filho, conta com a presença dessas pseudomulheres, que lançam ameaças obscenas aos convidados.
Shahnaz me intriga e também me repulsa. No machista norte da Índia, por que é que alguém opta por cortar fora sua virilidade em troca do poder de abençoar ou amaldiçoar os outros?
Eu já vira Shahnaz batendo palmas numa festa de casamento, como se estivesse dançando flamenco, e falara com ela uma vez no santuário de um místico sufi (do sufismo, misticismo arábico-persa que sustenta ser o espírito humano uma emanação do divino ao qual tenta reintegrar-se).
Dar meu endereço e telefone de casa a um eunuco me pareceu um pouco duvidoso, então pedi a um intermediário que combinasse um encontro para nós num local próximo. Mas foi um erro tático.
Normalmente as pessoas incômodas que se aproximam de mim no túmulo de Humayun voltam atrás quando repito meu refrão de sempre: "Vim aqui para praticar a contemplação silenciosa. Vá embora, por favor".
Elas ficam desnorteadas, e eu posso passear em paz. Agora, porém, quem me cercava não eram guias turísticos ansiosos por um trabalho. Em lugar disso, os jardineiros e varredores, que raramente olham uma mulher européia nos olhos, vinham a toda hora me aconselhar a não andar nessa má companhia. Todos queriam mandar Shahnaz embora do local.
Um bilheteiro disse, revoltado: "Não permitimos gente desse tipo aqui -"hijras'." Existem estimados 100 mil hijras apenas em Nova Déli (capital da Índia), e só uma minúscula parcela deles é feita de hermafroditas naturais.
"Comprei dois ingressos e estamos juntas", respondi, enquanto subíamos a escadaria monumental, de braços dados. Fomos barradas mais uma vez, agora por um jardineiro armado com uma foice. "Fora daqui, prostituta imunda", gritou a Shahnaz.
"As pessoas sempre nos maltratam", reclamou. Duas senhoras idosas ameaçaram bater na hijra com as sandálias. Cercada por uma platéia hostil, era impossível fazer perguntas pessoais a Shahnaz. Acabei dando uma gorjeta a um guarda para que mantivesse afastados os curiosos, e nos escondemos atrás de um biombo.
Eu não sabia se chamava Shahnaz de ele ou ela. Quando pequena(o), era um garoto. Agora ela(e) vive e trabalha com um bando de libertinas(os) que aparecem em festas de casamento e nascimento, como madrinhas malvadas.
Acredita-se que o mau olhado de um eunuco, quando contrariado, é tão potente quanto o de uma cigana. Eles têm o direito de reivindicar qualquer criança recém-nascida de sexo ambíguo.
Shahnaz tem 21 anos e fugiu de casa com os eunucos aos 8 anos de idade. "Se um garoto rebola ao andar, as pessoas notam", explicou. Os eunucos ofereceram a Shahnaz uma comunidade, algo muito mais estruturado do que o modo de vida gay. Em Nova Déli, os gurus eunucos recrutam e depois leiloam seus jovens protegidos. Um dançarino bonito pode valer até US$ 3.000.
Os jovens desajustados das aldeias procuram as hijras e podem, mais tarde, submeter-se a uma cirurgia grosseira, na qual o pênis e os testículos são retirados com um só golpe de faca. É essencial que a ferida sangre: "O sangramento permite a saída da energia masculina", disse Shahnaz. Os ferimentos são cauterizados com uma barra de ferro em brasa. "Eu sou diferente", ela me disse. "Já nasci assim. Não precisaram cortar nada."
De fato, a área de sua virilha parecia ser totalmente plana por baixo da túnica, mas um verdadeiro hermafrodita não teria um peito tão achatado.
"O destino me fez dançar como hijra, embora minha mãe tivesse me criado como menina. Pêlos não crescem no meu rosto", ela se gabou, acrescentando que, às vezes, não se veste como mulher, especialmente quando viaja.
"Para evitar ser violentada, me disfarço de lavrador. Mulheres sozinhas sofrem indignidades e atrocidades. Esse é meu maior medo", confidenciou Shahnaz. Sentindo-me um pouco vulnerável, acompanhei o eunuco de volta ao riquixá que o aguardava.


Tradução de Clara Allain


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