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ÍNDIA
Garoto abandonou sua família aos 8 anos e passou a participar de festas em Nova Déli; país tem 100 mil eunucos
Indiano foge de casa para virar eunuco
JAN McGIRK
do "The Independent", em Nova Déli
Perto do meu prédio em Nova
Déli há um pequeno túmulo recoberto por um domo azul. Seu nome oficial é Sabz Birj, o Domo Verde. Durante anos, achei que era o
túmulo da ama-de-leite do imperador Akbar. Mas o Domo Verde
azul, pelo qual passo diariamente
de carro, me faz lembrar que não
devo dar nada como certo e preciso estar sempre pronta para o inesperado. Pareceu-me o lugar perfeito para topar com Shahnaz, um
dos eunucos do meu bairro.
Ao lado de dois de seus amigos
espalhafatosos, Shahnaz acenou
para mim desde um riquixá. Os
três usavam maquiagem e gritavam palavrões no trânsito.
A existência de eunucos parece
ser um anacronismo, num mundo
em que não faltam drag queens na
TV e desfiles de gays nas ruas. Incapazes de procriar, acredita-se
que podem conferir fertilidade a
outras pessoas.
É por isso que a maioria das festas públicas na vida das mulheres
indianas, como, por exemplo, seu
casamento ou a festa promovida
após o nascimento de cada filho,
conta com a presença dessas pseudomulheres, que lançam ameaças
obscenas aos convidados.
Shahnaz me intriga e também me
repulsa. No machista norte da Índia, por que é que alguém opta por
cortar fora sua virilidade em troca
do poder de abençoar ou amaldiçoar os outros?
Eu já vira Shahnaz batendo palmas numa festa de casamento, como se estivesse dançando flamenco, e falara com ela uma vez no
santuário de um místico sufi (do
sufismo, misticismo arábico-persa
que sustenta ser o espírito humano
uma emanação do divino ao qual
tenta reintegrar-se).
Dar meu endereço e telefone de
casa a um eunuco me pareceu um
pouco duvidoso, então pedi a um
intermediário que combinasse um
encontro para nós num local próximo. Mas foi um erro tático.
Normalmente as pessoas incômodas que se aproximam de mim
no túmulo de Humayun voltam
atrás quando repito meu refrão de
sempre: "Vim aqui para praticar a
contemplação silenciosa. Vá embora, por favor".
Elas ficam desnorteadas, e eu
posso passear em paz. Agora, porém, quem me cercava não eram
guias turísticos ansiosos por um
trabalho. Em lugar disso, os jardineiros e varredores, que raramente
olham uma mulher européia nos
olhos, vinham a toda hora me
aconselhar a não andar nessa má
companhia. Todos queriam mandar Shahnaz embora do local.
Um bilheteiro disse, revoltado:
"Não permitimos gente desse tipo
aqui -"hijras'." Existem estimados 100 mil hijras apenas em Nova
Déli (capital da Índia), e só uma
minúscula parcela deles é feita de
hermafroditas naturais.
"Comprei dois ingressos e estamos juntas", respondi, enquanto
subíamos a escadaria monumental, de braços dados. Fomos barradas mais uma vez, agora por um
jardineiro armado com uma foice.
"Fora daqui, prostituta imunda",
gritou a Shahnaz.
"As pessoas sempre nos maltratam", reclamou. Duas senhoras
idosas ameaçaram bater na hijra
com as sandálias. Cercada por uma
platéia hostil, era impossível fazer
perguntas pessoais a Shahnaz.
Acabei dando uma gorjeta a um
guarda para que mantivesse afastados os curiosos, e nos escondemos atrás de um biombo.
Eu não sabia se chamava Shahnaz de ele ou ela. Quando pequena(o), era um garoto. Agora ela(e)
vive e trabalha com um bando de
libertinas(os) que aparecem em
festas de casamento e nascimento,
como madrinhas malvadas.
Acredita-se que o mau olhado de
um eunuco, quando contrariado, é
tão potente quanto o de uma cigana. Eles têm o direito de reivindicar qualquer criança recém-nascida de sexo ambíguo.
Shahnaz tem 21 anos e fugiu de
casa com os eunucos aos 8 anos de
idade. "Se um garoto rebola ao andar, as pessoas notam", explicou.
Os eunucos ofereceram a Shahnaz
uma comunidade, algo muito mais
estruturado do que o modo de vida
gay. Em Nova Déli, os gurus eunucos recrutam e depois leiloam seus
jovens protegidos. Um dançarino
bonito pode valer até US$ 3.000.
Os jovens desajustados das aldeias procuram as hijras e podem,
mais tarde, submeter-se a uma cirurgia grosseira, na qual o pênis e
os testículos são retirados com um
só golpe de faca. É essencial que a
ferida sangre: "O sangramento
permite a saída da energia masculina", disse Shahnaz. Os ferimentos são cauterizados com uma barra de ferro em brasa. "Eu sou diferente", ela me disse. "Já nasci assim. Não precisaram cortar nada."
De fato, a área de sua virilha parecia ser totalmente plana por baixo da túnica, mas um verdadeiro
hermafrodita não teria um peito
tão achatado.
"O destino me fez dançar como
hijra, embora minha mãe tivesse
me criado como menina. Pêlos não
crescem no meu rosto", ela se gabou, acrescentando que, às vezes,
não se veste como mulher, especialmente quando viaja.
"Para evitar ser violentada, me
disfarço de lavrador. Mulheres sozinhas sofrem indignidades e atrocidades. Esse é meu maior medo",
confidenciou Shahnaz. Sentindo-me um pouco vulnerável, acompanhei o eunuco de volta ao riquixá
que o aguardava.
Tradução de
Clara Allain
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