São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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CRISE CONTINENTAL

Para o uruguaio Luis Costa Bonino, protestos violentos são antidemocráticos; especialistas questionam tese

"Golpe social" ameaça AL, adverte analista

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

A América Latina, que já viveu sob o espectro dos golpes militares, enfrenta agora uma nova ameaça à democracia, os "golpes sociais". O alerta é lançado pelo cientista político uruguaio Luis Costa Bonino, 52.
"Quero chamar a atenção para a lógica antidemocrática de alguns movimentos sociais de protesto que derrubaram ou ameaçam derrubar governos latino-americanos eleitos de forma legítima", afirma Bonino, doutor pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.
"Estranhamente, considera-se que pessoas que realizam saques e outras formas violentas de protesto representam o povo, em oposição aos políticos que roubam a sociedade. Os "golpes sociais" podem derrubar governos legítimos, mas não têm nenhum fundamento de legitimidade", diz.
Sua tese, no entanto, é contestada por estudiosos nas áreas de ciência política e/ou organização da sociedade ouvidos pela Folha.
"Os movimentos sociais estão fazendo demandas legítimas e é preciso construir canais de diálogo. Do contrário, só há uma forma de parar com os movimentos sociais: a ditadura", afirma a antropóloga Leilah Landim, 53, professora de serviço social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Mais atuais, iminentes e perigosos são os "golpes de mercado", que, como já disse Soros [George Soros, dono de um dos maiores fundos de investimento do mundo", vota 24 horas por dia, não a cada quatro anos", diz José María Gómez, 55, professor de teoria política da UFRJ, autor de "Política e Democracia em Tempos de Globalização" (ed. Vozes, 2000).
"É verdade que governos democraticamente eleitos têm caído com uma frequência razoável na região, mas vejo com suspeita qualquer generalização", diz Octavio Amorim Neto, 38, professor de ciência política da Fundação Getulio Vargas (RJ).
Todos concordam ao definir as causas da instabilidade política na América Latina: a manutenção ou mesmo o aprofundamento da exclusão social, e a incapacidade dos governos democráticos, acuados pelo endividamento interno e externo e pela dependência do capital financeiro, de darem uma resposta ao problema.
"A semente dos "golpes sociais" foi supor que seria possível construir democracias estáveis sobre as fundações da exclusão social", afirma Bonino. Ele inclui o crescimento da representação corporativa e o desprestígio das instituições políticas (parlamentos e partidos) como os outros componentes da tríade que explicaria os "golpes sociais".
Segundo o uruguaio, o desprestígio dos militares torna pouco provável a ocorrência de golpes militares. "Mas os "golpes sociais" têm se mostrado eficazes para eliminar líderes que resultem incômodos para certos grupos que, em alguns casos, têm poder, mas não têm suficientes votos", diz.
A situação na Venezuela seria, para Bonino, um exemplo puro de "golpe social" em andamento. "Pobreza e marginalidade como antecedentes imediatos da ascensão de Hugo Chávez; a irrupção da participação corporativa -com os diversos grupos descontentes com o governo de um lado e os apoiadores do presidente de outro- nas ruas; e a inexistência de instituições representativas que falem em nome de toda a sociedade. A única alternativa para os setores sociais em conflito é ganhar e submeter ou perder e ser submetido", diz.
Para Octavio Amorim Neto, especializado em política latino-americana, o problema venezuelano só pode ser entendido a partir de uma análise da atuação de Chávez, a quem ele faz duras críticas.
"Nunca se viu, na história recente da América Latina, um presidente atiçar, pela sua retórica e pela sua ação, a luta de classes como Chávez está fazendo. As elites venezuelanas não são flor que se cheire, mas um presidente que transformou a mobilização do ressentimento popular contra as classes altas em método de governo está fadado ao fracasso", diz.
Para Amorim Neto, os governos democráticos devem defender os interesses dos mais carentes, mas não podem transformar as classes média e alta em "inimigos". "Se isso acontecer, eles se protegem de forma radical também. Os radicais se retroalimentam", diz.
Já a queda do presidente argentino Fernando de la Rúa, há um ano, foi, segundo o cientista político, resultado de uma reação espontânea da população diante da gravíssima situação econômica. "Não havia na Argentina um movimento organizado com o objetivo de derrubar o governo", diz.
Bonino tem outra visão: "A Argentina tem agentes especializados nesses "golpes sociais': os "piqueteiros". Além disso, o golpe social fez o serviço à sociedade de transformá-la em inocente das possíveis responsabilidades coletivas pela bancarrota do país".
José María Gómez, nascido na Argentina mas radicado no Brasil há 23 anos, considera legítimos os movimentos de contestação. "Podemos inverter o raciocínio e discutir até que ponto são democráticas as nossas democracias. Que qualidade de democracia temos? As lutas dos supérfluos ou secundários podem parecer antidemocráticas, mas são democráticas. E não é porque foram respeitadas as regras democráticas que aqueles que conduzem a política não devam ser questionados, inclusive porque eles têm descumprido suas promessas eleitorais."
Ele salienta, no entanto, que os movimentos de contestação não têm resultado em projetos políticos concretos. "A tese do "golpe social" pode dar uma idéia falsa de ver, por trás dos conflitos sociais, um ator que desestabiliza como se fosse portador de um projeto. Mas as múltiplas resistências não têm conseguido convergir e se tornar um sujeito homogêneo."
Para a antropóloga Leilah Landim, a resposta à instabilidade política na América Latina é uma só: mais participação dos movimentos sociais. "Quanto mais a sociedade construir canais através dos quais os interesses possam ser negociados, quanto mais institucionalizados estiverem os movimentos sociais, maior a possibilidade de uma transição democrática em momentos de crise. O voto é fundamental, mas não basta."


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