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ADEUS ÀS ARMAS
Considerado um dos maiores terroristas do continente, Merlo diz que caminho agora é a democracia
Ex-rebelde argentino apóia fim da guerrilha
BRENO ALTMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quase sempre apresentado como um dos mais temíveis chefes
terroristas da América Latina, o
argentino Enrique Gorriarán
Merlo, 59, condenado à prisão
perpétua, está encarcerado na Penitenciária de Vila Devoto, em
Buenos Aires, onde recebeu a reportagem da Folha. Ele responde
pelo ataque ao quartel de La Tablada, em janeiro de 1989, durante
o mandato de Raúl Alfonsín, o
primeiro presidente eleito no país
depois do regime militar (1976-1983).
Doze anos depois desses acontecimentos, no entanto, o ex-líder
guerrilheiro passou a defender
métodos políticos diferentes. "No
mundo de hoje não há espaço para a luta armada", afirma. "A esquerda deve buscar seus objetivos
por meio da participação nas instituições democráticas."
Sua análise busca explicar essa
virada como resultado de uma inflexão dos inimigos que sempre
combateu. "As Forças Armadas
latino-americanas, depois da
Guerra Fria, ficaram desmoralizadas. Atualmente, os regimes democráticos são soluções mais estáveis para os grandes investidores", ressalta. "Se o outro lado não
faz a guerra, as armas não devem
substituir a política. A hora da rebelião só chega quando acaba a da
democracia", acredita.
Mas faz questão, porém, de insistir que não é um guerrilheiro
arrependido. As palavras ganham
acidez diante da insinuação de co-responsabilidade pela violência
que marcou a sociedade argentina nas décadas de 70 e 80. "Apenas reagimos ao terror imposto
pelos militares", declara. "Exercemos o direito de legítima defesa
contra um regime que torturava,
matava e fazia desaparecer seus
oponentes."
Gorriarán é um dos nomes mais
célebres dessa geração que empunhou armas por suas idéias. Nascido em San Nicolás, na província
de Buenos Aires, estudou economia em Rosário e trabalhou no
frigorífico Swift, um dos maiores
do país. Nos anos 60, ingressou no
Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) e logo chegou à
sua direção.
Quando essa agremiação decidiu-se pela insurgência, formou
um braço armado denominado
Exército Revolucionário do Povo
(ERP), um dos principais grupos
guerrilheiros argentinos. Gorriarán estava na linha de frente. Sobre seus ombros pesa uma vasta
lista de operações. Atribuem-lhe
sequestros, roubos a banco, ataques a quartéis e atentados contra
a vida de agentes repressivos,
além de fugas lendárias.
Depois que os militares chegaram ao poder, Gorriarán teve que
deixar a Argentina. Praticamente
toda a direção do PRT-ERP havia
sido eliminada. Após um tempo
na Europa, tomou o rumo da Nicarágua, onde participou, em
1979, da Revolução Sandinista.
Assumiu a direção do Departamento de Inteligência Exterior no
governo liderado por Daniel Ortega e Tomas Borge.
A jovem república tinha dificuldades para se consolidar. O antigo
ditador Anastásio Somoza fugira
pouco antes que os guerrilheiros
ingressassem na capital. Comandava, desde Assunção, no Paraguai, um movimento de resistência aos novos governantes, os
"contras", como ficaram conhecidos os ex-soldados da Guarda Nacional empenhados em atos de sabotagem e terrorismo para desestabilizar o regime emergente.
Gorriarán, então, juntou um
punhado de sobreviventes do
ERP, gente de sua máxima confiança, e colocou em marcha um
plano espetacular. Os militantes
argentinos dariam fim à vida do
ex-ditador nicaraguense. Às
10h35 de 17 de setembro de 1980,
com um tiro de bazuca, morria
Somoza na capital paraguaia, à
bordo de um Mercedes Benz prateado. Os serviços de segurança
não demoraram a identificar o comandante da operação.
"Quem deu o disparo mortal foi
Hugo Irurzun, o capitão Santiago,
um experiente quadro do ERP",
lembra Gorriarán. "Ele usava
uma bazuca chinesa chamada
RPG-2." O atirador, porém, não
conseguiu escapar. Localizado
pela polícia paraguaia em uma casa que servia de esconderijo, segundo o relato de Gorriarán, foi
baleado, preso e fuzilado. Um
pôster em sua homenagem forra a
parede da cela de Vila Devoto.
Santiago cumprira instrução
militar em diversas escolas guerrilheiras. Uma delas, recorda um
ex-militante do ERP, estava localizada na Líbia. Lá foi seu colega
de treinamento, no final dos anos
70, outro argentino com história
extraterritorial. Chamava-se
Humberto Paz, o líder do comando que sequestrou, em 1989, o
empresário brasileiro Abílio Diniz, no bairro paulistano do Itaim.
Gorriarán, depois do atentado
contra Somoza, fugiu para o Brasil e voltou no final de 1980 ao país
dos sandinistas. A partir de 1983,
com o fim do regime militar na
Argentina, começou a planejar
seu retorno à terra natal. Circulava pelo continente, sempre com
documentação falsa. Do exílio,
coordenou a fundação do Movimento Todos pela Pátria (MTP),
que alcançaria celebridade com a
tentativa de tomada do quartel de
La Tablada. Um de seus refúgios
foi a cidade do Guarujá, no litoral
paulista.
Jamais pode voltar legalmente a
seu país, apesar de ter ingressado
várias vezes como clandestino. O
governo Alfonsín, para acalmar o
desassossego dos militares com
os processos por genocídio, manteve vigente uma ordem de captura contra o ex-dirigente do ERP.
Até hoje corre na Justiça uma acusação por ter participado em ataque ao regimento do Exército na
cidade de Azul, há 27 anos.
Clandestino desde 1973, depois
de escapar de uma prisão no norte
do país, viveu mais de vinte anos
foragido. Acabou sendo detido
pelo serviço secreto argentino em
outubro de 1995, na cidade de Tepostlán, no México. Não havia
sentença de extradição, mas foi
embarcado na calada da noite para Buenos Aires. Um grupo de deputados mexicanos abriu um
processo contra o Estado por
cumplicidade ilegal com a polícia
argentina.
Nos próximos meses, Gorriarán
entrará com uma solicitação junto à Comissão Inter-Americana
de Direitos Humanos. Alegará
que sua prisão foi irregular e que,
portanto, deveria ser devolvido ao
México para o julgamento de um
pedido formal de repatriação.
Em dezembro encerrou, com
outros doze presos do MTP, a
mais longa greve de fome da história latino-americana, com 116
dias de duração. Todos os condenados conseguiram ter suas sentenças reduzidas e passaram a um
regime semi-aberto (podem sair
da cadeia para trabalhar e estudar,
regressando apenas para dormir).
Mas Gorriarán voltou à sua cela
sem obter qualquer benefício penal.
Um sorriso nervoso revela o
desconforto. O jeito pausado chega a ficar alterado. "Os generais da
ditadura foram indultados por
seus crimes bárbaros", protesta
Gorriarán. "Mas eu fui escolhido
para pagar pela audácia de uma
geração."
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