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São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 2003

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ANÁLISE

Êxito diplomático traz deveres

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A adoção da resolução 1483 pelo Conselho de Segurança da ONU (CS), que concede à coalizão anglo-americana -doravante Autoridade- o direito de conduzir a reconstrução do Iraque, de explorar seus recursos petrolíferos e de organizar, com a colaboração da ONU, o processo político que deverá resultar na formação de um governo controlado pelos iraquianos, foi uma vitória incontestável da diplomacia dos EUA.
Vale lembrar que, há dois meses, os americanos foram à guerra sem a anuência da ONU após perder a batalha diplomática. Desta vez, em menos de duas semanas, Washington obteve a vitória que buscava sem fazer grandes concessões, embora, segundo Richard Grenell, porta-voz do embaixador dos EUA na ONU, John Negroponte, as mudanças no texto original tenham chegado a 90.
Dois pontos eram cruciais para os EUA e, na prática, permaneceram quase intactos. Primeiro, a direção da reconstrução do Iraque. Segundo, o controle da exploração do setor petrolífero.
"Washington fez concessões, mas elas não foram tão importantes. É verdade que foi dado um papel mais relevante ao representante da ONU, como queriam a Rússia, a França e a Alemanha. Todavia seu poder será quase nulo se a Autoridade não quiser permitir muita influência em seus processos de tomada de decisão, o que temo que venha a ocorrer", explicou à Folha Michael Kreile, especialista em ONU da Universidade Humboldt, de Berlim.
Para Davis Bobrow, do Centro Ridgway para Estudos sobre Segurança Internacional (EUA), a provável escolha do brasileiro Sérgio Vieira de Mello para o posto de representante especial da ONU para o Iraque é um indício de que sua autoridade não "incomodará os planos americanos".
"Ele é o favorito de Washington. Há acadêmicos que temem que ele tenha planos de tornar-se secretário-geral da ONU após Kofi Annan. Não sei se isso é verdade. Entretanto, se for, ele não se sentirá livre para realizar seu trabalho no Iraque. Afinal, sem o apoio dos EUA, que têm direito de veto no CS, ele jamais atingirá esse suposto objetivo", afirmou Bobrow.
Quanto ao petróleo, a Autoridade terá liberdade para determinar os níveis da produção iraquiana e para controlar a renda proveniente de sua exportação. "O texto deveria dar à ONU a tarefa de controlar o setor petrolífero até a formação de um governo local legítimo. Porém Washington não aceitou essa exigência dos franceses e dos russos", apontou Kreile.
Quem se espanta com a pífia oposição dos três países que lideraram o bloco antiguerra -a França, a Rússia e a Alemanha- deve lembrar que, em relações internacionais, nem sempre os princípios se sobrepõem aos interesses políticos ou econômicos.
"Os governos da França e da Alemanha atravessam uma fase difícil por razões econômicas e políticas. Assim, a reaproximação com os EUA esvazia as críticas internas que pesam sobre Paris e Berlim por ter feito dura oposição à guerra", analisou Françoise de la Serre, do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (Paris).
"Ademais, trata-se de um fato consumado. Washington fez a guerra sem a aprovação da ONU e também manteria as rédeas da reconstrução do Iraque sem ela. Para Paris e Berlim, seria custoso demais politicamente dar início a uma nova disputa na ONU."
"A Rússia não obteve muitas concessões dos EUA. A reestruturação da dívida iraquiana é uma minivitória, pois Moscou sabe que, ainda assim, será difícil receber algo do Iraque", disse Mark Kramer, especialista em Rússia da Universidade Harvard (EUA).
Washington passa, portanto, a ter uma responsabilidade ainda maior sobre o futuro do Iraque. Se sua autoridade for benigna, a comunidade internacional se renderá aos fatos -gostem ou não franceses, russos e alemães.
Contudo, se a intenção dos EUA for só distribuir contratos a suas empresas e a vender petróleo, sua legitimidade será mais contestada do que nunca mesmo por aqueles que aprovaram a resolução 1483.


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