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DIPLOMACIA
Entidade festeja amanhã sua entrada em funcionamento, mas suas limitações e o fracasso de sua reforma atraem críticas
Em crise, ONU comemora 60º aniversário
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A ONU comemora amanhã o
60º aniversário de sua entrada oficial em funcionamento, então
com 51 países, em meio a uma
grave crise de legitimidade após
ter visto o projeto de "reforma
abrangente" de autoria de seu secretário-geral, Kofi Annan, naufragar no mês passado. Contudo a
necessidade de sua existência como único verdadeiro fórum de
discussão internacional é incontestável, de acordo com especialistas consultados pela Folha.
"A ONU apresenta um grave
problema de legitimidade porque, na prática, há cinco países
realmente influentes em seu seio,
enquanto seus outros 186 membros acabam desempenhando papel coadjuvante todas as vezes em
que assuntos importantes para a
comunidade internacional, sobretudo os relacionados a graves
situações de conflito, entram em
debate", analisou Charles Tilly,
autor de, entre outros, "From
Contention to Democracy" (da
contenção à democracia).
Com efeito, o direito a veto no
Conselho de Segurança (CS) -o
mais relevante órgão de tomada
de decisões da ONU- permanece sendo uma exclusividade de
cinco Estados: os EUA, a Rússia, a
França, o Reino Unido e a China.
"Isso significa que eles pesam
muito mais na definição das ações
da entidade", avaliou Tilly.
Ademais, segundo Matthieu Elgar, professor de ciência política
da Universidade de Paris-13
(França), as decisões da ONU são
baseadas em posições políticas,
não necessariamente na Justiça
internacional, o que, "por vezes,
também mina a credibilidade de
seus esforços" internacionais.
"Trata-se de uma organização
interestatal. Suas tomadas de posição refletem, portanto, os interesses dos países que a compõem.
Ora, não é raro que os interesses
nacionais sejam contraditórios, o
que atrasa os procedimentos da
entidade e, às vezes, chega a bloqueá-los. Afinal, como os "cinco
grandes" têm o direito de vetar
iniciativas, a possibilidade de bloqueio é considerável", disse Elgar.
Desde sua criação, em 1945, a
ONU não ganhou notoriedade
pelo sucesso de suas intervenções,
sobretudo em questões de guerra
e paz. Durante a Guerra Fria, suas
estruturas multilateralistas foram
travadas pela confrontação bipolar que opunha os EUA à URSS. À
época, os membros permanentes
do CS não hesitavam em usar seu
poder de veto, e a organização se
limitava a tentar abrandar o sofrimento das populações atingidas
por conflitos periféricos.
Agrava o quadro atual o fato de
a ONU não ter poder para impedir ações internacionais de Estados que, em nome da defesa de
seus interesses nacionais, decidem contornar suas estruturas
multilateralistas, como fizeram os
EUA antes da Guerra do Iraque.
Para Jack Spencer, da Fundação
Heritage, influente centro de pesquisas conservador americano,
esse tipo de procedimento é legítimo, e a ONU não deve intervir em
questões de segurança porque
"interesses nacionais maiores não
podem depender das decisões de
um fórum em que Estados não-democráticos têm voz ativa".
"A ONU nunca foi eficaz em
questões de guerra e paz porque
suas estruturas não lhe permitem
sê-lo. Num período de combate
ao terror, não faz sentido permitir
que ela determine o que os EUA
ou qualquer outro país soberano
têm o direito de fazer na cena global. Creio que ela deva limitar-se
às tarefas em que tem experiência,
como a distribuição da ajuda humanitária", afirmou Spencer.
Para ele, a ONU deveria seguir o
exemplo da OEA (Organização
dos Estados Americanos), impedindo que Estados não-democráticos fizessem parte de seus quadros. "Sua inaptidão para opor-se
a um ditador ou a um país que
apóia terroristas explicita a necessidade de uma reforma. A OEA é
um ótimo exemplo", explicou
Spencer. O problema dessa tese,
para Tilly, é "como determinar
quem é ou não é democrático".
Também deterioraram a imagem da ONU os escândalos que
envolveram seu nome nos últimos anos. Entre os maiores figuram o programa Petróleo por Comida no Iraque, em que Kojo, filho de Annan, está implicado, e os
abusos sexuais cometidos por forças de manutenção da paz na República Democrática do Congo
(ex-Zaire) contra adolescentes.
Ações bem-sucedidas
Por outro lado, não se pode desprezar as ações bem-sucedidas da
ONU na cena internacional. Ela
foi criada com o objetivo de permitir que seu caráter de fórum
global impedisse que a brutal violência da Segunda Guerra Mundial viesse a repetir-se, já que dá
voz a todas as nações do planeta.
Assim, ela merece crédito por
disseminar um comportamento
pacifista entre seus membros, por
mobilizá-los para prover ajuda
humanitária a milhões de pessoas
no mundo, como ocorre atualmente com os sobreviventes ao
terrível terremoto no Paquistão,
por cuidar de refugiados que sofrem as agruras das guerras e por
velar pela manutenção da paz em
Estados que atravessam conflitos
internos, como nos Bálcãs.
"Não é difícil encontrar razões
para criticar as deficiências da
ONU, pois sua própria essência
de fórum político prejudica sua
eficácia em algumas áreas. Todavia é irrefutável que o trabalho do
Unicef [Fundo da ONU para a Infância] e o do Alto Comissariado
para Refugiados são imprescindíveis", apontou Jean-Nicolas Beuze, diretor do Conselho Internacional sobre Políticas de Direitos
Humanos, uma ONG suíça.
Conclui-se, portanto, que, para
ter mais legitimidade aos olhos da
opinião pública global, a ONU
precisa realmente ser reformada
-embora nenhum analista sério
creia que os membros permanentes do CS venham a abrir mão do
direito a veto. Mesmo assim, não
se pode negligenciar os esforços
bem-sucedidos da entidade. "Se a
ONU não existisse, algo parecido
teria de ser criado", disse Beuze.
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