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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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Escudo humano admite ingenuidade

NEIL MAC FARQUHAR
DO ""THE NEW YORK TIMES", EM BAGDÁ

Um aviso anunciando a mais sombria de todas as tarefas estava pregado no pequeno mural de "Escudos Humanos" montado no saguão do hotel Andalus Apartments, em Bagdá, na manhã da quinta-feira passada.
Procuravam-se três voluntários para juntar-se aos 13 que já se comprometeram a viver na usina de energia Bagdá Sul para tentar impedir que seja bombardeada, em caso de guerra.
Voluntários vindos de meia dúzia de países pretendiam instalar-se em um dormitório coletivo na usina, local que, afirmam, lhes foi sugerido pelo governo iraquiano. Desde que chegaram ao Iraque, no início do mês, visitam hospitais, usinas de tratamento de água e instalações críticas para a população civil.
"Já nos mostraram vários locais, e um deles era essa usina elétrica", disse o militante antiguerra britânico Godfrey Meynell, 68. "Sou a favor de ficarmos nesse local porque me parece que, se a eletricidade for cortada, o tratamento de água sofrerá os efeitos, além dos hospitais. É claro que os EUA parecem ter se tornado tão imorais que há poucas chances de que isso faça a menor diferença."
Como boa parte do confronto atual com o Iraque, a questão dos escudos humanos remete à Guerra do Golfo. Depois de invadirem o Kuait, em 1990, os iraquianos arrebanharam centenas de trabalhadores petrolíferos, bancários e estrangeiros residentes no país e os obrigaram a viver durante meses em vários locais de risco, incluindo instalações industriais e bases militares iraquianas. Foram soltos antes do início da guerra, em 1991. Os EUA já avisaram várias vezes que, mesmo que os escudos humanos sejam voluntários, dessa vez sua utilização será vista como crime de guerra. "Usar escudos humanos não é estratégia militar -é assassinato, violação das leis do conflito armado e crime contra a humanidade. E será tratado como tal", disse o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.
Os voluntários discordam. "Isso é um absurdo", disse o veterano fuzileiro naval Ken Nichols O'Keefe, 33, que iniciou a idéia dos escudos humanos voluntários. "Eles não estão me usando. Sou voluntário."
No início deste mês, o vice-primeiro-ministro iraquiano, Tareq Aziz, disse que os estrangeiros são bem-vindos. "Eles devem vir e se posicionar em lugares de que precisamos para sobreviver."
O governo iraquiano está pagando para alojar os voluntários em pequenos hotéis no centro de Bagdá. Oferece a eles telefonemas gratuitos ao exterior e acesso à internet para fazer lobby com conterrâneos nos países de origem.
Mas diplomatas ocidentais dizem não ter certeza se, depois que o cerco começar, o governo vai querer a dor de cabeça de relações humanas que os escudos humanos vão representar. Alguns dos escudos têm a mesma dúvida.
Outros já estão tomando consciência do lado sinistro de algo que alguns dizem ter interpretado, com certa ingenuidade, como uma espécie de protesto incomum contra a guerra.
Os escudos destacam que vieram para Bagdá para proteger civis, não para manifestar apoio ao governo iraquiano. Mas os iraquianos sempre ignoram distinções desse tipo.
O número de escudos humanos ainda é incerto. No mural do grupo, na quinta-feira, saltou de 97 para 132 com a chegada de novos voluntários, mas apenas cerca de 60 compareceram à reunião. Desse total, 18 são americanos. Os organizadores do encontro prevêem que sejam milhares.
Mas outras delegações de paz reclamam do fato de que frequentemente são todas tratadas conjuntamente como escudos. "Não estou aqui para virar mártir", disse a atriz alemã Beate Malkus, 33.
Toda a campanha dos escudos humanos parece recender um espírito que é algo entre um coletivo socialista e um dormitório universitário comunitário. Um aviso fixado no mural anuncia uma campanha de doação de sangue. O aviso chama a atenção para o fato de que participar da campanha será uma maneira fácil de obter o certificado exigido de todo estrangeiro para comprovar que não tem Aids.


Tradução de Clara Allain

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