São Paulo, quarta-feira, 24 de março de 2004

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ARTIGO

Verdades incômodas

PAUL KRUGMAN
DO ""NEW YORK TIMES"

O ""U.S. News & World Report" publicou, alguns meses atrás, que, desde o dia em que tomou posse, a administração Bush cobriu o governo com ""um véu de segredo". Após o 11 de Setembro, o sigilo da administração passou a não ter limites, tanto assim que Ari Fleischer, antigo porta-voz de George W. Bush, chegou a avisar que os americanos ""precisam vigiar o que dizem, vigiar o que fazem". Os cidadãos patrióticos deviam aceitar a versão dos acontecimentos oferecida pelo governo e não fazer perguntas incômodas.
Mas algo notável vem acontecendo: cada vez mais pessoas de dentro da administração estão encontrando a coragem necessária para revelar verdades em questões que abrangem desde a poluição com mercúrio até a guerra contra o terror.
Quando lemos as inevitáveis tentativas de denegrir o caráter daqueles que abrem o bico, é importante nos darmos conta de até que ponto é arriscado revelar verdades incômodas sobre o governo Bush. Quando o general Eric Shinseki disse ao Congresso que o Iraque no pós-guerra exigiria uma força de ocupação grande, foi o fim de sua carreira. Quando o embaixador Joseph Wilson revelou que o discurso sobre o Estado da União de 2003 continha informações sabidamente falsas, alguém na Casa Branca destruiu a carreira de sua mulher, revelando que ela era agente da CIA.
O mais recente a adiantar-se para revelar o que sabe é, evidentemente, Richard Clarke, ex-especialista em contraterrorismo do atual governo e autor do livro recém-lançado ""Against All Enemies" (contra todos os inimigos).
No programa ""60 Minutos" de domingo, Clarke disse o que até então era indizível: que Bush, o autoproclamado ""presidente da guerra", fez ""um trabalho deplorável na guerra ao terrorismo". Após algumas horas de silêncio chocado, o trabalho de assassinato de caráter começou. Clarke ""pode ter tido ressentimentos guardados, já que provavelmente queria um cargo mais alto", declarou Dick Cheney, que também afirma que Clarke não estava bem informado. (Como assim? Antes do 11 de Setembro, ele era o mais alto funcionário a trabalhar com o contraterrorismo.) De acordo com Scott McClellan, porta-voz da Casa Branca, as críticas de Clarke dizem respeito ""mais à política e à promoção de seu livro do que a políticas específicas".
É claro que os funcionários do governo Bush precisam denegrir o caráter de Clarke. Há evidências independentes de sobra que confirmam a essência das acusações.
O governo deu pouca atenção ao contraterrorismo mesmo após o 11 de Setembro? Após os atentados, o FBI pediu US$ 1,5 bilhão para operações de contraterrorismo, mas a Casa Branca cortou essa verba em dois terços.
E, quando terroristas lançarem um novo ataque em solo americano, verão seu trabalho facilitado pela estranha relutância do governo em proteger alvos potenciais. Em novembro de 2001, uma delegação bipartidária exortou o presidente a gastar cerca de US$ 10 bilhões em prioridades de segurança, tais como portos e usinas nucleares. Mas Bush simplesmente se recusou a fazê-lo.
Finalmente, será que alguns representantes de alto nível do governo de fato queriam reagir ao 11 de Setembro atacando o Iraque? É claro que sim. ""Desde os primeiros momentos após o 11 de Setembro", disse Kenneth Pollack ao programa ""Frontline", ""havia um grupo de pessoas, dentro e fora do governo, que acreditavam que a guerra ao terrorismo devesse se voltar primeiramente contra o Iraque." Richard Clarke veio apenas acrescentar mais detalhes.
Mesmo assim, o governo gostaria que acreditássemos que Clarke foi levado a escrever seu livro por motivações baixas. Entretanto, em vista do domínio que os ""falcões" exerceram sobre as listas de livros mais vendidos, até o outono passado, é improvável que ele o tenha escrito por dinheiro. Levando-se em conta que, até muito recentemente, a maioria dos analistas políticos achava que a reeleição de Bush fosse garantida, é pouco provável que Clarke tenha escrito o livro na esperança de conseguir um cargo político. E, dado o pendor do governo Bush por punir seus críticos, ele deve ter sabido que, ao escrever o livro, estava assumindo um risco pessoal muito grande.
Por que, então, ele o escreveu? Que tal esta resposta: talvez ele simplesmente quisesse que o público soubesse a verdade.


Tradução de Clara Allain


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