São Paulo, terça-feira, 24 de abril de 2007

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opinião

O homem que derrotou o comunismo

MARY DEJEVSKY
DO "INDEPENDENT"

É a pergunta clássica que os historiadores se fazem: são os indivíduos ou forças impessoais que movem as nações? Qualquer pessoa que, como eu, tenha visto Boris Ieltsin descer a escadaria do Parlamento russo e subir num tanque para dirigir uma mensagem de contestação à pequena multidão de moscovitas que assistiam à cena não terá a menor dúvida quanto à resposta.
Aquele 19 de agosto de 1991 está preservado em câmara lenta em minha memória. Naquela manhã, Moscou parecia uma zona de incertezas atemporais. Um estado de emergência tinha sido declarado antes do amanhecer. Segundo um anúncio padronizado e desajeitado, o presidente Mikhail Gorbatchov tinha sido afastado do poder por problemas de saúde. Um comitê assumira o poder.
Tanques tinham entrado em Moscou em meio ao trânsito matinal e convergido para pontos estratégicos: o Kremlin, a sede da KGB, o Ministério da Defesa e a Casa Branca, o cavernoso edifício do Parlamento russo. Antevendo a parafernália de golpes militares, verificações de identidade e ruas fechadas por barreiras, decidi, sem qualquer razão em especial, ir até a Casa Branca.
Veículos blindados estavam posicionados em volta do edifício. Carros diplomáticos lotavam o estacionamento. Então, de repente, um movimento: um grupinho começou a descer as escadas. Ieltsin estava no centro, e assessores de cada lado dele pareciam tentar dissuadi-lo. Ele caminhou em direção aos tanques, devagar e muito deliberadamente. Trocou algumas palavras em tom jocoso com os guardas, e ele estava no alto de um tanque, lendo palavras rabiscadas numa folha de papel. "Não aceito este golpe" foi o teor crucial da mensagem.
Até o momento em que o mundo se deixou distrair pela bufonaria bêbada dos últimos anos de Ieltsin no cargo, foi essa a imagem que o definiu. Ela foi, também, seu legado. Sem o desafio lançado por Ieltsin, o golpe de Estado contra o presidente soviético poderia ter tido êxito, e a União Soviética poderia seguir, trôpega, encabeçada por um Politburo cada vez mais temeroso e repressivo. Boris Ieltsin será lembrado pela maioria dos russos que viveram os anos 80 e 90 com muito afeto e respeito.
Ele foi uma personalidade única, um siberiano duro, um russo até o âmago, e um líder que obedecia a seus instintos, e não a planos traçados. Homem de ação, não tramava nem planejava. Não foi um dissidente, na acepção comum do termo. Não começou como adversário do regime soviético; terminou em oposição, como líder regional frustrado que se revoltava contra as estruturas rígidas que impediam reformas. E a verdade é que seu legado foi misto. Ele presidiu sobre liberdade, mas também sobre caos, criminalidade e o colapso econômico. Hoje, à luz do que muitos vêem como recuo das liberdades individuais sob Putin, existe o risco de que Ieltsin seja recordado pelas coisas erradas, da forma errada.
Contrariamente ao mito cultivado, ele não foi um democrata no sentido comum do termo nem um proponente da livre expressão e do livre mercado movido por seus princípios. Mas tampouco foi o exibicionista embriagado dos clipes televisivos que foram exibidos repetidas vezes ontem à noite.


Tradução de CLARA ALLAIN


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