|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Reverendo Chad Varah, criador do serviço de prevenção ao suicídio, quer afastar influência da religião sobre a organização
"Pai" mundial do CVV critica rumo da ONG
ANA SAGGESE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES
O reverendo Chad Varah, mítico inventor dos serviços de prevenção ao suicídio, continua ativo
e inquieto aos 89 anos. Em carta a
ser apresentada no final deste mês
ao conselho da organização Samaritanos, que ele mesmo fundou, e na entrevista abaixo, ele
acusa a atual direção da organização de não ter escrúpulos, agir por
""ambição", tentar alijá-lo da entidade e violar um dos princípios
de sua doutrina: o atendimento
sem cunho religioso.
Samaritanos é o nome britânico
da ONG cuja similar brasileira
funciona desde o início dos anos
60 como CVV, Centro de Valorização da Vida.
Pastor anglicano, Chad Varah
começou seu trabalho em 1936,
quando foi chamado para oficiar
o funeral de uma menina de 14
anos. A garota havia se suicidado
ao ficar menstruada pela primeira
vez. Desesperada, pensou que havia contraído uma doença.
Esse episódio chocou de tal maneira o jovem reverendo que ele
resolveu dar aulas de educação sexual para jovens. Descobriu depois, numa notícia de jornal, que
três pessoas se suicidavam a cada
dia em Londres. Foi assim que,
em 1953, numa pequena sala munida de telefone na igreja de St.
Stephen, no centro londrino, ele
fundou os Samaritanos.
Cor da batina
Quinta-feira, 7 de junho, dia de
eleições gerais no Reino Unido.
Duramente bombardeada durante a Segunda Guerra, a igreja de St.
Stephen foi projetada pelo arquiteto sir Christopher Wren no século 17. No seu interior, apenas
um funcionário e um coro que ensaia músicas sacras. Chad Varah
deverá celebrar o culto das 12h30.
A reportagem tentava falar com o
reverendo havia mais de um mês.
Assessores dos Samaritanos informavam que ele não dava mais
entrevistas e estava muito doente.
Pelo vidro da torre central, um
sol fraco aquece os bancos ao redor do púlpito. Um funcionário
informa que Varah chegou e pode
atender. A igreja continua vazia.
A reportagem da Folha é conduzida a uma pequena sala, onde está um senhor de idade avançada,
bastante alquebrado, mas que irradia entusiasmo. Diz que adora o
Brasil, país que visitou no início
dos anos 70. O funcionário interrompe para saber que batina o reverendo quer usar. "Vermelha, da
cor da bandeira", é a resposta. Ao
contrário da informação oficial, o
reverendo aceita o pedido de entrevista, que aconteceu no dia seguinte, na igreja.
Os Samaritanos trabalham com
voluntários e vivem de doações.
Estão representados em 361 sedes,
com cerca de 31 mil voluntários
espalhados por 41 países. Os pressupostos são de que o atendimento é não-profissional e não-diretivo (ou seja, o voluntário ouve e
procura compartilhar sentimentos, mas não dá conselhos a quem
procura o serviço). Chad Varah
não tem lutado apenas contra a
osteoporose e um câncer de próstata de que é vítima. Apesar do sucesso da organização que idealizou e fundou, combate o que
acredita ser uma inclinação atual
para submeter o atendimento a
propósitos religiosos. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - Por que as pessoas se matam, afinal?
Chad Varah - Quando as pessoas
se sentem muito estressadas,
quando não conseguem ter nenhuma esperança de mudança,
estão sozinhas, sem um amigo,
elas tentam se matar. Não cabe a
nós condená-las, mas ajudá-las.
Folha - Como começou o serviço
dos Samaritanos?
Varah - Quando eu comecei os
Samaritanos, ficou claro que, na
maioria dos casos, não se tratava
de pessoas com distúrbios mentais, não precisavam de um psiquiatra. Precisavam de um conselho, e eu as aconselhava. Eu tinha
só minha secretária para me ajudar quando inaugurei o telefone
de emergência. Mas contávamos
com uma enorme publicidade
porque eu tinha trabalhado com
muitos jornalistas e contei a eles o
que estava fazendo. Então, em 2
de novembro de 1953, o telefone
começou a tocar e as pessoas começaram a aparecer. Nós ficamos
muito sobrecarregados. Felizmente, não só pessoas que vinham buscar ajuda apareceram,
mas também pessoas para oferecer ajuda. Eu não sabia o que elas
poderiam fazer, exceto oferecer
café para as outras pessoas e sentar perto delas. E é claro que esses
voluntários começaram a conversar com os clientes.
Depois de três meses, eu perguntei para Vivien, minha secretária: "Estou conseguindo atender a todos, o que está acontecendo? O número de pessoas está diminuindo?". Ela respondeu:
"Muitas pessoas que vêm vê-lo
vão embora uma hora depois sem
precisar mais falar com o senhor".
"Por quê?" E ela me disse: "Bem,
eles conversam com os voluntários". "Qual é a mágica? O que esses voluntários falam para eles?",
eu perguntei, e ela me respondeu:
"Nossa! Como você está triste!
Como está mal, o que está acontecendo com você? Coisas assim".
Eles não sabiam, mas o que faziam era terapia de escuta. Davam
toda a atenção de que as pessoas
precisavam naquele momento e
não faziam nenhuma recomendação. Chamei essa terapia de
"befriending" (agir como amigo).
Folha - Quantos voluntários o sr.
tinha na época?
Varah - Cinquenta. Em 1º de fevereiro de 1954, chamei-os e disse,
brincando: "Quem chamou vocês
aqui? Tomando posse da minha
missão e fazendo melhor do que
eu? Como punição passarei o trabalho para vocês". Fiquei só com
os casos de pessoas que precisassem de um aconselhamento especial. Os voluntários ficaram
apreensivos, mas disse a eles que
não se preocupassem, pois simplesmente continuariam fazendo
a mesma coisa.
Folha - O que mudou no atendimento desde então?
Varah - Nada, enquanto eu estava na direção. Não estou a par das
mudanças hoje. Um voluntário
estrangeiro me disse que poucas
pessoas procuram o atendimento
pessoalmente. Eu suponho que
seja mais fácil falar pelo telefone.
Mas naqueles dias as ligações
eram muito caras, e as pessoas
não estavam acostumadas a usar
o telefone. Quando comecei a expandir os Samaritanos no exterior, tive muito sucesso em países
como Sri Lanka e Índia, onde as
pessoas não tinham telefone. No
decorrer das viagens para propagar a idéia de "befriending", fui
pela primeira vez ao Brasil e conheci uma pessoa maravilhosa:
Jacques Andrè Conchon, o fundador do Centro de Valorização da
Vida, o CVV, organização similar
à dos Samaritanos.
Folha - O sr. tem um neto que mora e trabalha no Brasil. Ele atua no
CVV-Samaritanos?
Varah - Tenho cinco filhos (trigêmeos, um filho e uma filha). O
mais novo de um dos meus trigêmeos, William, sempre se interessou por religião e trabalho social.
Ele não atua nos Samaritanos
porque nós proibimos qualquer
ligação com religião. A religião intimida as pessoas. Nossa regra
possibilita realizar o trabalho em
países não cristãos. Não poderíamos ter quatro filiais na Malásia,
que é muçulmana, 13 sedes em Sri
Lanka, que é budista. Nós não temos religião, não pregamos, não
temos nada a dizer, apenas escutamos e tentamos entender o que
você está sentindo. Isso não interessa a William, que é muito religioso e está ligado a uma organização de serviço social com prática religiosa. Ele cuida e dá aulas de
religião para meninos de rua numa região muito perigosa na periferia de Recife. Tem feito progressos na língua portuguesa e arrumou uma namorada brasileira.
Estou com um presente para ele,
um volume raro que encontrei de
"Os Lusíadas", de Camões.
Folha - O sr. é contra o suicídio
mesmo para doentes terminais?
Varah - Não temos o direito de
decidir pelas pessoas. Tudo o que
dizemos a elas é que nos importamos com elas e que estamos aqui
para ajudá-las, se elas nos permitirem. Não somos uma agência de
prevenção ao suicídio. A decisão
não é nossa. Nossa decisão é tentar mostrar que a vida pode ser
boa e que nosso método é eficaz.
Durkheim [o sociólogo francês
Émile Durkheim, 1858-1917" dizia
que o número de suicídios tenderia a ser estável. Com exceção dos
períodos de guerra, quando o índice se reduz, e em tempos de revolução e turbulência social,
quando aumenta. Eu mesmo
nunca imaginei que uma organização com mais de 200 sedes, trabalhando 24 horas por dia, 365
dias por ano, pudesse diminuir os
índices de suicídio no país.
Folha - O serviço dos Samaritanos
pode gerar uma dependência nas
pessoas que se valem dele? Como
enfrentar esse problema?
Varah - É responsabilidade do
diretor de cada sede ensinar aos
voluntários como se posicionar
em relação às pessoas. Há um
problema quando as pessoas retornam com frequência. Nós tentamos resolvê-lo com a mudança
de voluntários. O cliente nunca
será atendido pela mesma pessoa.
Folha - A seu ver, quando o trabalho começou a ser subordinado a
fins religiosos?
Varah - Começaram a usar as
idéias dos Samaritanos como pretexto para estimular as pessoas a
frequentar a igreja. Existe uma organização na Europa chamada
Ifotes (Federação Internacional
de Serviços Telefônicos de Emergência) que estimula a pregação.
Na Escandinávia, as pessoas que
atendem o telefone são pastores.
Eu não sei se isso mudou recentemente, mas os pastores não eram
pessoas preocupadas com o suicídio, só faziam isso porque eram
mandados pelos superiores. E o
trabalho da igreja é irrelevante na
prevenção ao suicídio. Quando
fui fazer uma cirurgia no estômago e no coração, decidiram unir as
sedes internacionais dos Samaritanos com a Ifotes e a Life Line
(Linha da Vida), uma organização similar. Tudo o que me resta é
andar em círculos com uma muleta. Estou tentando resgatar os
Samaritanos das mãos da igreja.
Tento persuadir os Samaritanos
britânicos a não terem conexão
com eles. Eles não têm escrúpulos, acho que estavam esperando
que eu morresse alguns anos
atrás, mas não morri. E, como não
conseguiram me matar, vão continuar tendo de lidar comigo.
Quando fiquei doente, passei o
controle da Befrienders International (nome dos Samaritanos fora do Reino Unido) a uma mulher
britânica que trabalhava para a
organização em Hong Kong.
Confiava nela, mas ela fez mudanças pelas minhas costas, fundou
uma nova organização e a registrou aqui no Reino Unido. Agora,
estou tentando convencer os Samaritanos britânicos a colocá-la
para fora. Temos um ditado que
diz "longe da vista, longe da mente", e infelizmente eu não estava
vendo nem falando com frequência com os Samaritanos. Agora as
pessoas não dão importância a
mim. Antigamente, nas conferências da Universidade de York, eu
sempre estava no palco com os
outros presidentes e psiquiatras.
De uns anos para cá, não estou
mais e não posso falar. Somente
em pequenos seminários, com
menos de cem pessoas.
Folha - Por quê?
Varah - Porque as pessoas têm
ambição de poder e autoridade.
Levei um ano para persuadir as
203 sedes das ilhas britânicas a me
deixar encontrar o conselho. Depois de um ano me ignorando,
consegui encontrar o comitê executivo para propor uma petição.
Folha - No Brasil tem acontecido
algo parecido?
Varah - O Brasil foi o único país
em que me senti confortável para
vincular o nome dos Samaritanos
ao do CVV, porque eles aceitaram
os nossos princípios de "befrienders", sem compromissos com
pregação religiosa. Quando eu fiquei incapacitado de visitar o Brasil, algumas coisas ruins aconteceram. A organização se dividiu.
Agora existem 57 sedes: 50 sedes
do CVV-Samaritanos, seis do
Amigo Anônimo e uma outra independente. Espero que todas sigam o mesmo princípio.
Folha - Tem crescido muito o número de suicídios entre homens
nos últimos dez anos. Por quê?
Varah - Comecei meu trabalho
como um terapeuta sexual, eu sabia que pessoas com problemas
sexuais tinham mais tendência ao
suicídio. Eles ligavam e, se um homem atendesse, desligavam. Se
uma mulher atendesse, eles tentavam se abrir com ela. Depois, tomei conhecimento de que as voluntárias não se sentiam à vontade com aquele tipo de ligação. Em
algumas ligações a pessoa perguntava qual era a cor da calcinha,
por exemplo. O que, na minha
concepção, é uma pergunta muito
suave. Algumas voluntárias desligavam o telefone. Então, fiz uma
reunião e disse que essas ligações
mereciam ser recebidas por pessoas que soubessem lidar com
elas e não por quem se ressentisse.
Disse que, se alguém ligasse perguntando a cor da calcinha, o telefone não deveria ser desligado. Eu
chamava de "Brenda" todas as
mulheres que lidavam bem com
esse tipo de ligação. Faziam anotações sobre as ligações, sabiam
quem usava nome falso etc. E elas
provaram ser muito eficientes.
Mas surgiu uma objeção às
"Brendas", que chegaram a ser
acusadas de encorajar as pessoas
a um tipo de relação sexual pelo
telefone, o que não era verdade. O
resultado é que o conselho impediu a sede de receber esse tipo de
ligação. Tudo o que as pessoas podem fazer é ligar para um desses
entretenimentos estúpidos que
dizem: eu vou fazer você gozar em
30 segundos. Mas quem quer gozar em 30 segundos [risos]? Os Samaritanos não conseguiram continuar algo que comecei e planejei
com cuidado. Acho que eles são
os culpados pelo crescimento do
suicídio entre os homens.
Folha - O sr. acha que o problema
pode ser resolvido com aulas de
educação sexual nas escolas?
Varah - Essas aulas são muito
pobres, e não cabe a nós dizer o
que as escolas ou os pais devem
fazer. Fazer sexo é usado como
equivalente de foder, mas existem
muitas maneiras de fazer sexo. Algumas delas são impróprias para
adolescentes, mas, no minuto em
que você define que fazer sexo significa apenas penetração, está desencorajando o adolescente a fazer outras coisas.
Folha - Em quem o sr. votou nas
eleições britânicas de 7 de junho?
Varah - Eu votei em William Hague, do Partido Conservador.
Porque parecia ser o único que
queria proteger a nossa rainha, a
nossa dignidade e o nosso dinheiro e impedir que sejamos caçoados pela União Européia. Eu não
tenho muito interesse em política,
não confio em políticos.
Folha - Qual foi a sua impressão
do Brasil?
Varah - Achei um país maravilhoso. Se fosse jovem, adoraria
morar lá. Quando fui para o Brasil, já tinha uma certa idade e agora vou fazer 90 em novembro. De
todos os países da América do Sul,
é o mais promissor. Obviamente,
existem coisas que eu desaprovo,
como a destruição da floresta
amazônica e o problema da pobreza. Mas posso dizer uma coisa,
o menor índice de suicídios no
Brasil é nas favelas, porque você
não se mata se tem alguma esperança, e as pessoas que não têm
nada sempre têm esperança de
que alguma coisa melhor aconteça. São pessoas mais amigáveis. E
o Brasil foi o único país do mundo
que conseguiu criar uma organização igual à minha.
Texto Anterior: Comentário: Bush conseguiu unificar a Europa Próximo Texto: Frases Índice
|