São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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O IMPÉRIO VOTA - RETA FINAL

Mentor da carreira política do presidente, de quem ganhou o apelido nada lisonjeiro, Karl Rove participa de todas as decisões

"Flor do Estrume" é braço direito de Bush

JAMES HARDING
DO "FINANCIAL TIMES", EM WASHINGTON

Um estacionamento em Waco, Texas. Era o final de agosto, e George W. Bush estava descansando em sua casa de campo, o 248º dia de sua Presidência passado na fazenda. Enquanto caminhava ao hotel para me registrar, encontrei três homens de volta de um jantar: Michael Gerson, o redator dos discursos presidenciais; Mark McKinnon, diretor de mídia de Bush; e Karl Rove, seu principal estrategista político.
Rove exibiu jovialidade em nosso rápido bate-papo, mas nem sempre foi tão gentil comigo. Alguns meses atrás, fui entrevistar um dos líderes do Partido Republicano. Em minha presença, ele telefonou a Rove para pedir permissão para conversar comigo. Rove lhe respondeu, segundo o dirigente republicano, que "ele não é um de nós".
Talvez por isso Bush tenha dois apelidos para Rove. Um é "Boy Genius" (menino gênio), e o outro é "Turd Blossom" (flor do estrume; para aqueles que não falam texano, "turd blossom" é referência a uma flor que cresce em um monturo).


Rove desfruta da peculiar honra de ter sido atacado nominalmente por John Kerry. Trata-se também do primeiro assessor a tornar-se tema de um filme. "Se você se assustou com "Fahrenheit 11 de Setembro", o cérebro de Bush vai lhe causar pesadelos", diz o anúncio


Por um lado, esse homem de 53 anos é encarado por seus colegas no mercado de política e pelos especialistas do setor como um inovador estratégico incomparável, capaz de redefinir as fronteiras do Partido Republicano. Por outro lado, os democratas que derrotou no Texas e os oponentes republicanos superados ao longo dos anos o definem como uma encarnação física do pior que a política norte-americana tem a oferecer: a capacidade de denegrir, mas sempre de maneira acobertável.
Nesse sentido, Rove é uma espécie de pára-raios do presidente: como Dick Cheney, Rove desfruta da peculiar honra de ter sido atacado nominalmente por John Kerry, o candidato democrata à Presidência. Trata-se também do primeiro assessor político presidencial na história norte-americana a tornar-se tema de um filme de longa-metragem. "Se você se assustou com "Fahrenheit 11 de Setembro", o cérebro de Bush vai lhe causar pesadelos", diz o anúncio do filme.

"Palerma na Presidência"
Há quem o reverencie. "Não creio que haja dúvidas de que ele é um gênio", diz Brad Freeman, grande amigo de Bush e principal responsável pela arrecadação de fundos para sua campanha na Califórnia. "Não acho que haja ninguém melhor para comandar uma campanha no país."
No entanto o número de pessoas que reconhecem seu brilhantismo, mas temem seus propósitos, é ainda maior. "Ele é o primeiro estrategista a eleger um palerma presidente dos Estados Unidos e a orquestrar o triunfo de um pensador relativamente medíocre que foi derrotado no voto popular e agora tem a chance de se tornar uma figura histórica graças a Osama bin Laden", diz Kevin Phillips, autor de "The Emerging Republican Majority" (a maioria republicana emergente), um clássico de 1967, e respeitado analista conservador das eleições presidenciais norte-americanas.
Um importante líder republicano, que como muitos dos entrevistados para este artigo só falou sobre Karl Rove sob a condição de que seu nome não fosse mencionado, disse que "as pessoas morrem de medo de Karl".
James Moore, autor do livro (e agora filme) "Bush's Brain" (o cérebro de Bush), examinou a trajetória de Rove e concluiu: "A carreira e a política de Karl Rove são uma ameaça à nossa república".
Sua influência se estende a assuntos muito distantes da simples estratégia eleitoral. Ele é mais que apenas um conselheiro do presidente: é o homem que coordena toda a operação. Nas passadas equipes presidenciais, a equipe política e a equipe estratégica eram entidades separadas. Mas Rove trabalha em ambos os campos. Já interveio em questões de política econômica interna: a "marca de Rove", como é conhecida, fica evidente na adoção de cotas para o aço e na pressão por cortes de impostos.


Sua influência se estende a assuntos muito distantes da estratégia eleitoral. Ele é mais que apenas um conselheiro do presidente: é o homem que coordena toda a operação. Já interveio em questões econômicas e também influenciou a política externa


De maneira ainda mais incomum, Rove também influenciou a política externa. Quando o embaixador francês Jean-David Levitte tentou promover uma reaproximação entre Paris e Washington procurou Rove primeiro para discutir a possibilidade de uma conversa telefônica entre Bush e Jacques Chirac.
Rove descarta a idéia básica de "Bush's Brain", de que o presidente é um títere e ele o titereiro. De fato, o mito urbano favorito dos céticos quanto a Bush, ou seja, o de que Rove é o ventríloquo e Bush seu fantoche, tem um defeito evidente: é difícil para o presidente ser o títere de Rove se dizem, igualmente, que ele é o títere de Dick Cheney ou o de Don Rumsfeld. Bush talvez não seja o mais intelectual dos presidentes, mas é um homem que gosta de conselhos combativos e sente, com razão ou não, forte orgulho quanto ao seu poder de decisão.
A grande idéia política que orienta Rove é não só vencer a eleição de 2004 mas cimentar um realinhamento político que transforme os republicanos em partido natural de governo dos Estados Unidos. A estratégia de Rove para garantir o poder republicano muito além de quatro anos, portanto, é muito mais do que uma coleção de jogadas de campanha. Trata-se de um julgamento não só sobre a situação da nação mas quanto à direção em que ela se encaminha. Trata-se de um plano de longo prazo, construído em torno de três princípios: tirar vantagem do ímpeto conservador da sociedade e dirigi-lo; conquistar credibilidade como o partido da guerra; e solapar o apoio tradicional das comunidades de negros, hispânicos, sindicalistas e judeus ao Partido Democrata.
Rove vê a eleição de 2004 como um marco no esforço republicano para garantir o poder. O primeiro passo para garantir esse futuro foi alinhar o Partido Republicano com a categoria de eleitores mais importante dos Estados Unidos: os devotos. Desde que Bush perdeu no voto popular, em 2000, Rove está obcecado com os quatro milhões de eleitores cristãos e conservadores que, em sua estimativa, não foram às urnas.
Ao garantir que Bush opte por uma agenda social conservadora, Rove está coreografando uma manobra política significativa, ou seja, mimando a direita religiosa e ao mesmo tempo atraindo os democratas que gostam de armas, temem a Deus, se opõem ao aborto e deixaram de se sentir em casa em seu partido.
Brian Lunde, ex-diretor-executivo do Comitê Nacional Democrata que aderiu à causa republicana e, mais diretamente, ao governo Bush, agora trabalha com Rove para conquistar essas democratas. Ele diz que Rove "provavelmente compreende micropolítica melhor do que qualquer outra pessoa no país: como trabalhar de baixo para cima, do eleitor ao candidato". E a fórmula Rove para atrair democratas é enfatizar questões sociais, em lugar das econômicas. "Tomemos por exemplo um operário democrata da Pensilvânia", diz Lunde. "Combinamos valores sociais, como a oposição ao controle de armas, com a guerra ao terror."
Sob as instruções de Rove, a campanha Bush-Cheney 2004 está sendo "microdirecionada" aos democratas. Representantes republicanos vão ou ligam para os distritos eleitorais de maioria democrata e identificam pessoas que poderiam abandonar o partido. Descobrem que revistas essas pessoas lêem, a que programas de TV assistem, que carros costumam comprar. Nos Estados potencialmente decisivos, como Minnesota e Wisconsin, por exemplo, adquirir uma licença de caça é uma transação de registro público. E a organização Sportsmen for Bush (esportistas por Bush) foi criada pelo comando da campanha presidencial para tentar conquistar os caçadores, tanto democratas quanto republicanos.
A principal contribuição de Rove, porém, acontece no plano macro, e não no micro. Foi Rove, dizem os republicanos e os dirigentes da campanha, que fez as principais escolhas estratégicas da campanha Bush. Concluiu que o atual pleito não é uma "eleição de mudança" e que, como nas campanhas de reeleição de Eisenhower em 1956 ou Reagan em 1984, o povo norte-americano está hesitante quanto a trocar de comandante-em-chefe em meio a um período conturbado.
Como resultado, Rove vem dando destaque ao medo do desconhecido, o que implica semear a ansiedade quanto a uma liderança nova e não testada. Os americanos estão certos em sua preocupação quanto ao terrorismo, afirma a campanha Bush, e deveriam se preocupar ainda mais caso escolham John Kerry. Foi Rove, igualmente, que logo percebeu o potencial político da guerra contra o terrorismo.
Em 18 de janeiro de 2002, apenas quatro meses após os ataques terroristas e menos de dois meses depois que as tropas norte-americanas chegaram ao Afeganistão, enquanto Bush, Cheney e Rumsfeld estavam apenas começando a preparar seu plano para a guerra no Iraque, Rove fez o discurso mais revelador desde que chegou ao seu posto. Enquanto os membros do Comitê Nacional Republicano se dedicavam a um substancioso almoço durante sua reunião de inverno em Austin, Texas, Rove lhes disse que o partido devia tomar a guerra como causa: "Podemos apelar ao país quanto a essa questão, porque as pessoas confiam em que o Partido Republicano trabalhe melhor na proteção e no reforço do poderio militar norte-americano, e portanto na proteção dos Estados Unidos".
E foi exatamente isso que os republicanos fizeram. Bush se definiu como "presidente da guerra". Discursou inúmeras vezes diante dos soldados, deixando claro para os norte-americanos uniformizados seu compromisso para com a defesa dos EUA, mensagem que funciona bem tanto para os 26 milhões de veteranos de guerra, 1,4 milhão de membros ativos das Forças Armadas e 1,4 milhão de membros da Guarda Nacional quanto para as mães de família que votam sem grande convicção nos democratas e agora vivem preocupadas com a segurança, depois do 11 de Setembro.
Rove definiu da seguinte maneira a questão dominante desta eleição: quem seria o melhor comandante-em-chefe em caso de guerra? O cálculo dele é que a política do medo propiciará a vitória.
Lealdade e admiração marcaram a relação entre Rove e George W. Bush desde o primeiro encontro. Rove trabalhava para Bush pai e lhe pediram que entregasse ao filho, que estava indo da faculdade para Washington, as chaves de um carro. Rove relembrou no ano passado, em entrevista à revista "New Yorker", que Bush "tinha muito carisma, muita presença, usava botas de caubói, uma jaqueta de piloto, exibia um sorriso maravilhoso, um enorme carisma, você sabe. Uau!" Foi um caso de amor político, que se transformou em corte deliberada: foi Rove que abordou Bush no final dos anos 80 para lhe propor a idéia de disputar o governo do Texas. E se converteu, enfim, em um casamento político extraordinariamente longo e monógamo: quando Bush assumiu a Casa Branca, Rove se mudou para o escritório que costumava ser ocupado por Hillary Clinton na ala oeste.
Os críticos dizem que as campanhas administradas por Rove tendem a seguir um padrão. Primeiro vem a definição da mensagem. Os candidatos que ele promove adotam uma mensagem estreita e se apegam a ela incansavelmente. A seguir, surgem as táticas escusas, boatos que sugerem sujeiras ocultas no passado do rival. A isso se segue a contraproducente refutação do oponente, que termina arrastado à sarjeta e acaba por tentar atribuir a culpa pela difamação a Rove e seu candidato, o que na verdade só atrai mais atenção para as acusações, em lugar de permitir que os eleitores se concentrem na mensagem eleitoral do adversário. O candidato de Rove sempre declara publicamente sua oposição à difamação e pede por um debate sobre a questão estreita que escolheu como campo de batalha eleitoral. A essa altura, dizem os críticos de Rove, o oponente perdeu tempo, dinheiro e o controle da discussão.

Sem provas incriminatórias
Rove já ouviu teorias da conspiração suficientes e sempre as trata com desdém. As alegações contra ele vêm se tornando cada vez mais elaboradas, mas o simples fato é que nenhuma delas foi comprovada. A explicação que ele oferece para as referências a manobras cada vez mais inspiradas que ele conduziria para destruir seus oponentes é que as pessoas preferem o mito à realidade.
"É preciso haver um mito sob o qual essa cidade [Washington] opera. E se você quiser acreditar nele, que o presidente não é tão inteligente, é preciso achar uma explicação, como por exemplo a de que eu sou o cérebro de Bush", disse ele ao "New York Times". "É muito bizarro, as coisas pelas quais levo crédito ou culpa e com as quais não tenho relação. As coisas que as pessoas sugerem que estou dizendo são um absurdo. Leio sobre mim mesmo no jornal e digo que devem estar falando de outra pessoa."
Não é a opinião de Rick Davis, que dirigia a campanha de John McCain em 2000. McCain acabara de obter vitória inesperada na primária de New Hampshire. O candidato de Rove, George W. Bush, estava perdendo a posição de favorito. A impressão era a de que, caso McCain voltasse a derrotar Bush na primária da Carolina do Sul, conquistaria a indicação do Partido Republicado para disputar a Presidência.
Mas as coisas subitamente se tornaram muito desagradáveis para McCain. Panfletos começaram a ser deixados nos pára-brisas de carros estacionados em igrejas sugerindo que McCain tinha uma filha ilegítima e negra (McCain e a mulher adotaram uma órfã do Sri Lanka). Quando McCain respondeu furiosamente aos ataques surgiram novos boatos, dando conta de que ele tinha algum desequilíbrio mental, depois de passar sete anos como prisioneiro de guerra no Vietnã.
A campanha de Bush insistia em que nada tinha ver com as críticas sujas dirigidas a McCain. Mas a equipe de McCain tinha opinião contrária e desperdiçou tempo e energia tentando provar que a campanha de Bush era responsável pelos boatos. "Cometemos um erro estratégico, o mesmo que Kerry está cometendo agora", diz Davis. "Estou falando da tentativa de atribuir a culpa por seus problemas e tribulações à campanha de Bush. Esse jogo não lhe valerá nenhum voto quando chegarmos às urnas."


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