São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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PODER ECONÔMICO

Chefia republicana ou democrata não altera política comercial do país, que sempre funciona como alavanca para empresas dos EUA

Império quer negócio, com Bush ou Kerry

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

DIZ A SABEDORIA CONVENCIONAL que, em matéria de política comercial, os democratas são protecionistas e os republicanos, bem mais liberais. É mais imagem que fato.
Fato: "Os presidentes democratas Jimmy Carter e Bill Clinton foram mais liberais que os republicanos Ronald Reagan e George W. Bush", lembra Kimberly Elliot, do Instituto para a Economia Internacional e do Centro para o Desenvolvimento Global, ambos de Washington.

Na verdade, a política comercial americana sempre funcionou como alavanca para abrir possibilidades de negócios para empresas dos Estados Unidos -um cenário que não muda, seja o presidente um democrata ou um republicano, haja ou não atentados terroristas ao redor do mundo.
Foi talvez a idéia de que "o negócio da América são os negócios" que ajudou a transformar os EUA na única superpotência remanescente. Por isso, tomar uma eventual vitória de John Kerry como um triunfo dos protecionistas na área comercial pode ser acreditar mais na lenda do que nos fatos.
O democrata Clinton negociou o Nafta (o acordo de livre comércio com Canadá e México), embora o México fosse o país que "mais incertezas criava em relação às conseqüências sobre o trabalho e o meio ambiente nos EUA, com o qual compartilha fronteira de 3.600 km", diz Elsie Echeverri-Carroll, diretora de Desenvolvimento Econômico do Escritório de Pesquisas em Negócios da Universidade do Texas em Austin.
As incertezas citadas por Echeverri-Carroll tocam diretamente em pontos que podem trazer alterações na política comercial americana, caso Kerry vença.
Havia inquietação pela perda de emprego nos EUA como decorrência do grande número de "maquiladoras" mexicanas, empresas fronteiriças que, na verdade, se limitam a apertar um parafuso e reexportar produtos para os EUA.
Empregam cerca de um milhão de pessoas, em geral de baixa qualificação, o que "causa preocupação em trabalhadores americanos, com a possibilidade de mudança de companhias para o México", lembra a pesquisadora.
Mais: "O fato de que muitas maquiladoras estão localizadas ao longo da fronteira gera inquietação com a possibilidade de que o ar e as águas compartilhadas pelos dois países se tornem crescentemente contaminados".
Não obstante, o democrata Clinton assinou o acordo que criou o Nafta, ao passo que o republicano Bush, supostamente mais liberal, "provavelmente terminará seu mandato com apenas um acordo de livre comércio assinado com a América Latina (com o Chile, bem menor com seus 15 milhões de habitantes do que o México e seus 100 milhões)", afirma Echeverri-Carroll.
Agora Kerry retoma a discussão sobre vincular acordos comerciais a direitos trabalhistas, numa ponta, e à proteção ao ambiente, na outra. No mínimo, haverá "nova linguagem sobre direitos trabalhistas", diz Gary Hufbauer, especialista em comércio do Instituto para a Economia Internacional.
Lance Compa, pesquisador da Escola de Relações Trabalhistas e Industriais da Universidade Cornell, de Nova York, diz: "Creio que Kerry, se eleito, retornará à política de Clinton, basicamente em favor do livre comércio, mas com mais atenção à dimensão social. Se Bush for reeleito, veremos apenas uma agressiva política de livre comércio sem preocupação alguma com inquietações sociais".
Lori Wallach, do Observatório Comercial Global, divisão da ONG Public Citizen, uma das mais dinâmicas ativistas do movimento contra a globalização, tem opinião parecida à de Compa.
Ela lembra que Kerry se comprometeu a reexaminar, nos seus primeiros 120 dias na Casa Branca, a política comercial americana, e avisa: "A plataforma democrata aponta problemas na proteção ao investidor contida em acordos do tipo Nafta e as ameaças que a liberalização dos serviços coloca para o acesso do consumidor a preços compatíveis. Está portanto claro que Kerry terá que fazer as coisas de forma diferente, mas o quê, em que grau e de que natureza só se tornará mais visível depois da eleição".

Problemas com o Brasil
De todo modo, já está claro que há um potencial de problemas nas negociações com o Brasil, tanto com Bush como com Kerry.
A diferença: os problemas com Bush são os já conhecidos, que emperraram a negociação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Lembra Lori Wallach: "A administração Bush continuará com sua agenda em temas complicados da Alca como respeito a patentes versus acesso a remédios, os termos do acordo sobre investimento e a desregulação do setor de serviços".
Nesses capítulos, o Brasil se opõe frontalmente. Quer que a Alca seja apenas uma negociação sobre comércio propriamente dito, ou seja, derrubada das tarifas de importação. Não quer discutir normas e regulamentos.
Também o confronto entre patentes e remédios se dará na Organização Mundial de Propriedade Intelectual, em que proposta conjunta de Brasil, Argentina e Bolívia foi tratada como "mistificação" pelo subchefe do comércio externo americano, Peter Allgeier, em recente visita ao Brasil.
Com Kerry, se Lori Wallach estiver certa e os democratas tiverem de fato segundos pensamentos sobre as benesses do livre comércio, esse atrito poderia diminuir. Mas aumentaria em outro lado: o Brasil considera que vincular comércio e direitos trabalhistas ou ambientais é manobra protecionista dos países ricos.
Lance Compa, especialista nessa área, acha porém que "Lula e Kerry deveriam encontrar meios de trabalhar juntos nesses temas".
Sua tese, à qual o Itamaraty tem sido refratário, é a de que "o Brasil deveria liderar os países em desenvolvimento para insistir em uma dimensão social para o comércio, em vez de cair no argumento dos economistas neoclássicos de que o vínculo comércio/ trabalho é protecionismo".

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