São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2001

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Cruz Vermelha recolhe os mortos

ÁNGELES ESPINOSA
DO "EL PAÍS", EM QALA-I-GULAI

Ayab Gul e Saíd Rahim colocam luvas de borracha e máscara. Com determinação, desenrolam um saco branco de plástico e colocam um cadáver dentro dele. O corpo se parte. Sem perder a compostura, recolocam a parte superior e, com um gesto que já repetiram muitas vezes, amarram os dois extremos da modesta mortalha.
Acaba a batalha e ficam os cadáveres. Os mortos do grupo perdedor não têm nome. Abandonados por seus companheiros que fugiram para se salvar, os corpos de muitos combatentes do Taleban jazem esparramados nas trincheiras. Os voluntários da Cruz Vermelha contam que os mais desesperados, ou os mais serenos, dos combatentes estrangeiros pró-Taleban "chegaram a se suicidar com granadas quando acabaram as balas".
A Cruz Vermelha anunciou que havia descoberto entre 400 e 600 cadáveres em Mazar-e-Sharif, havia enterrado 300 e que desconhecia se eles haviam morrido nos combates ou se haviam sido executados. Nos arredores de Cabul, Gul e Rahim já recolheram 50. O "El País" acompanhou sua equipe até Qala-i-Gulai, 55 km ao norte da capital.
Hakimi, um ex-guerrilheiro, fotografa os mortos pensando numa eventual tentativa de identificação futura.
O mau cheiro impregna a roupa, e alguns milicianos que há apenas alguns dias lutavam nessa mesma trincheira permanecem a uma distância prudente, com expressão meio de repulsa, meio de agradecimento. É uma tarefa que requer muito mais coragem do que colocar um fuzil Kalashnikov no ombro. Minas e munição que não explodiram são uma ameaça constante. A única proteção de Gul e Rahim são seus jalecos com o símbolo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha: uma grande cruz vermelha no peito. "Cada vez é mais difícil encontrar pessoas que queiram fazer isso, porque é muito desagradável e arriscado", diz Wasit, o sanitarista que dirige a equipe.

Cachorros
Qala-i-Gulai é um povoado pashtu e pró-Taleban até a medula. "Há quatro anos, quando o Taleban expulsou a Aliança do Norte daqui, fizemos o mesmo trabalho e, durante todo esse tempo, também ajudamos no intercâmbio de corpos entre um lado e o outro", diz Wasit. "O nosso trabalho fazemos para todos. Atendemos a mais de 80.000 pessoas, entre mortos e feridos, nos 11 anos que trabalho com o comitê."
"As pessoas nos ajudam muito", reconhece Hakimi. "Hoje foi fácil, ontem foi pior", adverte Wasit. "Os corpos estavam comidos por cachorros e tivemos que retirar as tripas."


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