São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2007

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ENTREVISTA
CHRISTOPHER HITCHENS


Mesmo que à força, devemos derrubar as teocracias

Inglês radicado nos EUA explica livro em que aponta caráter totalitarista das igrejas e pede um "novo Iluminismo"

PARA O JORNALISTA Christopher Hitchens, que está lançando no Brasil seu "Deus Não É Grande - como a religião envenena tudo" (Ediouro), "nosso dever é lutar pela secularização" das sociedades, mesmo que para isso seja necessário invadir Estados teocráticos como o Irã ou derrubar ditaduras como a de Saddam Hussein.
O inglês radicado nos EUA, defensor da intervenção militar de Washington no exterior, vê nas religiões, principalmente nos monoteísmos, sistemas de geração e perpetuação de autoritarismo. "Freud estava certo", diz, a esperança de um porvir melhor e o medo tornam as crenças intrínsecas ao ser humano.

FÁBIO CHIOSSI
ENVIADO A PORTO ALEGRE

A Folha conversou com Hitchens em Porto Alegre, aonde veio recentemente para "vender seu livro" e fez uma palestra a convite da Copesul, no seminário Fronteiras do Pensamento. Leia trechos da entrevista.  

FOLHA - Uma das principais teses de seu livro é que nossa razão nos municia do necessário para criar um sistema ético, assim não precisamos de uma ética transcendental. É isso?
CHRISTOPHER HITCHENS -
Sim. Nossa razão e nossa solidariedade. Nós não poderíamos ter evoluído sem isso.

FOLHA - Isso vem da evolução?
HITCHENS -
Sim. É consistente com o que nós sabemos ser a explicação de nossa existência, nossa sobrevivência. Evolução por meio da seleção natural. Nós "encontramos" os comportamentos que nos ajudariam a sobreviver e "descartamos" os que não nos ajudariam.

FOLHA - E pode-se deduzir que nós não precisamos de religião, já que não precisamos de uma ética transcendental?
HITCHENS -
Eu diria que isso é verdade, mas esse argumento parte do pressuposto de que a religião também é moral. E eu acho que a religião não é moral.

FOLHA - Não?
HITCHENS -
Não. As religiões nos ensinam a acreditar em coisas que não são morais. Exemplos: o sacrifício humano pode levar à salvação; a mutilação de genitais; a morte num assassinato suicida me levará ao paraíso.

FOLHA - Nesse caso, por que tantas pessoas parecem precisar da religião para se basear em alguma ética?
HITCHENS -
Bem, primeiro, sendo verdade que as pessoas o fazem, devo dizer que também é verdade que muitas pessoas não o fazem. Segundo, não podemos explicar facilmente porque as pessoas querem acreditar: existe o medo, particularmente da morte, do desconhecido. Ele é inato, está em nós, e ninguém é completamente livre disso.
E existe um outro motivo, que é o egocentrismo; o desejo de acreditar que o universo foi criado com o "eu" em mente. A religião responde de forma brilhante ao nosso sentido de auto-importância. Mas digamos também que a religião faz as pessoas acreditarem que existe algo maior que elas, algo "lá fora", algo transcendente. Faz as pessoas sentirem que existe alguma harmonia e alguma beleza no universo -é verdade, também para a música e a poesia. Mas é verdade que essas coisas podem ser concretizadas em uma experiência sem o sobrenatural. Eu não sou imune à música, à poesia ou a belezas naturais.

FOLHA - Quando essa necessidade de acreditar no sobrenatural se torna então perigosa e começa a "envenenar tudo"?
HITCHENS -
Imediatamente. Porque todas as ilusões que consideram seu formulador o objeto do "design", do destino, são potencialmente perigosas, pois sugerem que você, então, é capaz de ditar aos outros; você tem informação privilegiada. E não demora muito para que você comece a dizer: "Bom, não só eu vou cortar a pele do meu pênis [referência à circuncisão], mas você também deve fazer o mesmo, caso contrário vai para o inferno". Imediatamente temos uma mentalidade totalitarista. Todos têm de acreditar ou pagar por isso.
Vem da idéia de que você tem de ser amado por uma autoridade da qual você também tem medo, uma autoridade que você não pode mudar -pode chamá-la de Pai, se quiser. Você tem de amá-la e temê-la ao mesmo tempo. Amor compulsório? E medo compulsório? É como a adoração de Kim Jong-il, ou Stálin, ou os nazistas.
E é muito pouco saudável, eu acho. Além disso, são um medo e um amor compulsório que o perseguirão depois da sua morte. Ele também sabe o que você está pensando, conhece os pensamentos e crimes. Isso é "1984" [de George Orwell]. Eu acho que temos que nos emancipar disso.

FOLHA - Mas "1984" não é também a paródia de um projeto supostamente racional para a organização social que acaba desenvolvendo um dogmatismo?
HITCHENS -
Sim, a idéia da organização perfeita, que não tem espaço para erros. Aí nós temos o paraíso na terra: não há mais perguntas. Nenhuma preocupação, nenhuma ansiedade ou contradição. Em outras palavras, uma situação em que a vida humana seria completamente sem sentido. E eu não entendi isso perfeitamente até que fui para a Coréia do Norte. Então eu vi que a vida humana poderia se tornar completamente sem sentido.

FOLHA - Quando você esteve lá?
HITCHENS -
Em 2000. Eu estive em todos os três países ditos do "eixo do mal" [Irã, Síria e Coréia do Norte]. A Coréia do Norte é o mais perfeito sistema totalitário e, claro, é totalmente baseado na adoração -do pai e do filho. Eles quase têm uma trindade. É uma sociedade completamente religiosa, baseada no conceito do paraíso utópico. Não há outro propósito para a vida a não ser glorificar e agradecer ao líder; é tudo para o que se vive. E, claro, o trabalho, de um modo infernal.
Fome, sofrimento.

FOLHA - Falando na Coréia do Norte, você acha que, com o acordo, com os EUA e outros países, para o fim do programa nuclear, há possibilidade de mudança no país?
HITCHENS -
Não. Nossa política não deveria ser só desarmá-los. Nossa política deveria ser desmantelar o regime. Nós somos obrigados pela lei internacional, parece-me, a libertar o povo da Coréia do Norte. Qualquer outra coisa é compromisso com a escravidão.

FOLHA - Foi o mesmo caso no Iraque?
HITCHENS -
Sim. E o Irã também é, a propósito. Lá [nesses dois países] há a conexão entre a repressão interna e a agressão externa, a projeção da violência para fora. É o mesmo com os sistemas totalitários: porque eles falharam, eles têm de exportar sua violência.

FOLHA - Mas os EUA também não exportam seus supostos valores?
HITCHENS -
Não com repressão interna. O problema do Estado totalitário é que ele exporta sua própria falha, a repressão. A implosão doméstica só pode ser compensada pela exportação, de fato ou retórica, da violência. E os EUA não estão nessa posição. Ao contrário, eles têm uma sociedade e instituições extremamente relutantes em intervir no resto do mundo. É uma cultura isolacionista.

FOLHA - E essa interferência deveria ser militar, se necessária?
HITCHENS -
Bom, eles têm de conter um componente militar porque o desafio principal nesses três casos que acabamos de mencionar vem da aquisição de armas ilegais para que eles se tornassem invulneráveis. Então, claro, há um ingrediente militar no confronto, por definição. Nós paramos um deles, estamos inibindo os outros dois, mas não haverá um confronto neste momento. Deveria ter sido suficiente desarmar o Iraque, porque o Irã só está construindo sua arma, segundo alegaram corretamente, por medo de Saddam os atacar. Nós removemos a justificativa para o programa nuclear iraniano, mas eles o querem manter por outras razões.
É uma pena. Nós deveríamos ter parado a coisa toda, a Coréia do Norte também. Mas falhamos e estamos pagando.

FOLHA - E como isso vai acabar? Em uma guerra?
HITCHENS -
Claro. Eu espero que sim. Anseio por um confronto com o totalitarismo. Os teocratas iranianos parecem querer um confronto conosco. Se é o que querem, que venham. E eu posso lhe dizer quem vai perder.
E, se for feito direito, como no Iraque e no Afeganistão, um outro bom resultado seria a libertação das pessoas de uma ditadura teocrática. Temos de fazê-lo de um modo que seja uma vitória para eles também; não apenas derrotar as operações terroristas, mas remover o governo e libertar o povo. Eu procuro a guerra. Eu gosto de confronto; eu sou um marxista, e o confronto é o motor do progresso.

FOLHA - Mas há um sentimento antiguerra crescendo nos EUA, não?
HITCHENS -
A grande maioria dos americanos está disposta a pegar um preço em sangue e dinheiro se eles acharem que [a guerra] não é perda de tempo ou que o pais é irrelevante. Muitas pessoas entendem que aqueles que nos querem tirar do Iraque não são nossos amigos. Tudo o que é preciso é mostrar-lhes que estamos fazendo progresso contra essa gente. E, também, que nossa palavra tem valor, que não vamos correr, não vamos traí-los, abandoná-los.
Estamos nos desviando do meu livro; estou aqui no Brasil pra vender meu livro. Mas não acho que estejamos nos desviando totalmente, pois esse é um confronto com os teocratas. E é isso que estamos fazendo também no Afeganistão e no Paquistão: estamos forçando-os a decidir, por eles mesmos, se querem viver numa teocracia ou não. Porque nós não queremos. Estamos forçando-os a pensar sobre isso. É a maior discussão no momento. Este é o momento exato, creio, para um movimento das pessoas afirmando que ninguém que se diz agindo em nome de Deus é uma pessoa moral.

FOLHA - Você fala no livro da necessidade de um novo Iluminismo...
HITCHENS -
Um tanto clichê, não é mesmo? Foi o melhor que eu pude fazer. Não estou muito orgulhoso disso; eu queria poder ter escrito um fim melhor para o livro, mas...

FOLHA - A mensagem era essa. Mas a pergunta é, considerando que o Iluminismo não é uma novidade, e as religiões permanecem mesmo após esse tempo, não é uma tarefa difícil trazer um novo Iluminismo?
HITCHENS -
Sim; por isso é um fim muito fraco.
Eu sei muito bem que a religião é indestrutível, não só como uma instituição -bem, algumas igrejas desaparecem, mas a igreja em si não. A necessidade das pessoa de acreditar é -eu acho que Freud estava certo- inerradicável. Assim, o melhor que podemos esperar é que cheguemos a um "acordo": eu o deixo em paz, você me deixa em paz. Foi com o que eu comecei o livro. Mas então eu vi que isso não pode ser realista, eles não podem me deixar em paz. Porque, se eles acreditam no que dizem que acreditam, não podem manter isso privado.
Não pode ser uma crença particular a de que Jesus Cristo leva à salvação. Não pode ser um segredo que só você sabe -Jesus me ama, e eu o amo, e isso vai me levar à vida eterna -quem acreditaria nisso?
E o único modo de tentar fazer alguém talvez acreditar é dizer que todos têm de acreditar. Assim, eles não podem me deixar em paz, e eu tenho que me defender. O mínimo que podemos fazer é defender o Estado secular, a separação.


O jornalista FÁBIO CHIOSSI viajou a convite do seminário Fronteiras do Pensamento


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